Os capítulos 2 e 3 do Gênesis contam a saga do ser humano, colocando a humanidade em um “jardim”, chamado por nós de Paraíso. Nesse jardim haviam duas árvores: uma era a "árvore da vida", conhecida no ambiente e literatura extra-bíblica; a outra, existente só na Bíblia, era muito especial, chamada "do conhecimento do bem e do mal", da qual o ser humano não podia se aproximar, sob pena de morte.

E Javé Deus ordenou ao homem: «Você pode comer de todas as árvores do jardim. Mas não pode comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, com certeza você morrerá» (Gênesis 2,16-17).

Provocados pela serpente, a mulher e o homem não resistem e transgredem a proibição divina:

(A mulher) pegou o fruto e o comeu; depois o deu também ao marido que estava com ela, e também ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois, e eles perceberam que estavam nus. (Gênesis 3,6-7).

 

A maçã

Embora não seja mencionado na Bíblia, que fala simplesmente de “fruto”, na consciência coletiva o fruto colhido pelos habitantes do Jardim é a maçã. Uma análise científica, fria e distante da tradição veria nessa interpretação um sinal de ignorância. Ao invés, não é assim.

Em nossas traduções ao português, não encontramos nenhuma relação entre a dita árvore e a maçã. Todavia não é a mesma coisa para quem falava latim, que foi a língua predominante da igreja durante mais de um milênio. E foi baseados nessa língua que os filósofos e teólogos cristãos refletiram sobre a mensagem divina. Reflexão que chegou até nós, que herdamos, mesmo evangélicos. Em latim, maçã se diz “malus”, enquanto que mal é “malum”. São duas palavras muito próximas em latim e a ligação entre maçã e mal é quase automática, sendo usada para interpretar o significado da expressão bíblica “árvore do bem e do mal”.

 

A etiqueta “bem e mal” centro da questão

Muita gente pensa que Gênesis esteja falando de sexo, que o pecado é a provocação da mulher que faz com que o homem ceda e caía na arapuca. Daí nasce um preconceito muito grande tante em relação ao sexo quanto em relação ao papel da mulher como protagonista sedutora. O comportamento sexual está completamente ausente da intenção do autor sagrado nesse texto e o papel da mulher não tem nada a ver com a sedução.

O fato do autor ter "esquecido" uma das árvores, aquela da vida, demonstra também que o cerne da narração é a árvore do bem e do mal. Portanto, o autor não pretende falar da vida como questão metafísica, isto é, de uma vida que não termina se não se come do fruto proibido. O tema proposto é muito superior a tudo isso. O autor bíblico conhece muito bem o limite humano, a brevidade da vida e não tem resposta para tudo. Porém ele tem fé e sabe que Deus é o criador, que colocou no ser humano a sua própria essência, determinando para ele o caminho para a felicidade, embora tenha também dado de presente a liberdade, a vontade de desejar “colher” o fruto daquela árvore. O homem (ha-adam = humanidade) é o único ser criado que pode "desejar" colher o fruto; os outros animais nunca terão tal pretençao.

A questão central do autor javista, que escreveu esse texto bíblico, é uma questão moral. Para ele, colher o fruto da árvore significa não aceitar a etiqueta já estabelecida por Deus a respeito do que é bem e do que é mal. Se o ser humano se coloca no lugar de Deus e decide ele mesmo definir o que é bem e mal, ultrapassa uma fronteira que lhe tira de seu estado de graça. Nasce então um certo pudor, remorso, descobrindo-se nu.

Os Padres da Igreja, ligando a maça (malum) com essa história contada em Gênesis 3 já haviam detectado o cerne da questão. Cabe a nós conhecer essa relação e ler de maneira apropriada o texto bíblico, acolhendo esse princípio hermenêutico dado pela tradição dos padres da Igreja.