Aqui transcrevo integralmente a colocação do nosso leitor catarinense:
Sou acadêmico de teologia, e vejo muitos pensamentos diferentes a cada tema estudado pelos professores e sacerdotes, gostaria de uma ajuda sua sobre o diluvio e o mar vermelho, se realmente aconteceu estas passagens ou são figuras de linguagem.
Como estudante de teologia, é uma coisa boa que você se dê conta da presença de pareceres diferentes sobre questões inerentes à nossa fé. Isso lhe ajudará a formar sua própria opinião, sempre apoiando-se sobre bases sólidas, comprovadas pela experiência histórica da caminhada teológica da igreja. A teologia é a reflexão sobre Deus que procura entender a nossa relação de fé com a divindade, que tenta dar respostas para questões que são Mistério, que se revelam só aos poucos e de maneira parcial. Ela é expressão da fé que procura entender.
Em relação à Bíblia, os teólogos normalmente se apoiam nos estudos dos exegetas, nas conclusões que eles trazem a partir dos estudos literários que se baseiam em instrumentos metodológicos científicos e não meramente ideológicos. Nesse sentido, o estudo de textos antigos, como os dois que você menciona - a passagem dos hebreus pelo Mar Vermelho e a narração do dilúvio - não podem ignorar o estudo das fontes literárias e dos estilos de escritura que caracterizam os textos antigos.
Os dois textos citados possuem elementos comuns, como vamos ver, mas, ao mesmo tempo são colocados em contextos diversos.
O dilúvio
Aquilo que conta Gênesis, a partir de 6,6, precisa ser inserido dentro do contexto da história do início da humanidade. Essas narrações não são históricas no sentido clássico, mas representam uma interpretação da caminhada humana. Essa interpretação se apoia em recursos literários à disposição do autor de então, que quis interpretar o que é o ser humano diante de Deus, dando respostas a questões existenciais, tais como a nossa relação com Deus e a nossa relação com o pecado.
O dilúvio é a proposta de uma nova ordem, uma nova criação. É uma criação literária, não histórica. Essa narração quer mostrar como através das águas vêm tanto a morte quanto a vida. A ligação com a criação é muito evidente nessa história: o vento (Gênesis 8,1), que empurra as águas no final do dilúvio, lembra o “espírito de Deus” que está acima das águas (Gênesis 1,2). Depois do dilúvio, aparece a terra enxuta (8,7.14), assim como aparecera depois da intervenção divina, em Gênesis 1,9. A água destrói, mas também purifica e salva!
Sobre essa terra é possível começar uma nova história (os patriarcas), dando vida a uma nova humanidade, que não será mais destruída.
Êxodo 14: a passagem do Mar Vermelho
A passagem do Mar Vermelho não é simplesmente uma construção literária, pois pertence claramente a uma narração que funda o povo de Israel, a saída do Egito. Historicamente não sabemos bem como isso aconteceu. Há várias teorias em relação a essa “saída”. De qualquer forma, foi um evento histórico. É provável que a saga bíblica não seja uma reprodução objetiva da história, mas revela um momento histórico para os hebreus.
Com certeza a narração bíblica dessa “passagem” milagrosa seja influenciada por aspectos simbólicos. E a coincidência quer que aqui também sejam recordados os textos que mencionei acima. Essa relação é evidente na presença do elemento água. Também nesse texto de Êxodo a dupla função da água (punição e salvação) é palpável: os soldados egípcios, através dela, encontram a morte, enquanto que para os hebreus significa a conquista de um mundo novo.
Eis alguns elementos que, não por coincidência, aparecem na passagem do Mar Vermelho assim como tanto na criação quanto no dilúvio: para que o povo possa passar, durante a noite sopra um forte vento; eis que então as águas se abaixam e aparece a “terra enxuta” através da qual podem passar os hebreus.
Os egípcios, como aconteceu com a humanidade corrompida pelo pecado no tempo do dilúvio, morrem afogados na água, enquanto que a água, para Moisés e os hebreus, como foi para Noé e sua família, representa a salvação
Essa relação entre os três textos tem como objetivo mostrar que Deus que salva Israel das mãos do Egito é o mesmo Deus que criou o mundo. Criação e salvação são obras do mesmo Deus, duas características da ação divina. E como conclusão, o texto mostra que a criação de Israel é comparada à criação do universo.