Gênesis 11 conta um dos episódios mais conhecidos da Bíblia e marca a passagem de um período a outro: com ele termina a “proto-história” da humanidade e se inaugura a “história”, com os patriarcas (a partir de Gênesis 12 aparece Abraão).

No imaginário comum, esse episódio é marcado por uma ação humana e uma reação divina: os homens querem construir uma torre para tocar o céu e Deus, em represália, cria confusão fazendo com que não se entendam mais entre si e abandonem seu plano.

Será que entendemos bem a mensagem dessa passagem? Vamos nos por a seguinte pergunta: a unidade entre as pessoas e o fato de falar uma única língua é um mal? A divisão em várias línguas é uma punição? É provável que o autor se fez a mesma pergunta.

Mas procedemos por etapas, começando por ver como esse texto nasceu.

 

Contexto histórico

Os críticos dizem que estamos diante de uma história composta por volta do século VI antes de Cristo, quando o povo de Jerusalém havia sido derrotado e levado para o exílio em Babilônia. Nesse local, os judeus puderam ver as grandes cidades e construções daquela zona e também experimentar como existissem diferentes povos, que falavam línguas diversas. Puderam ver ainda quanta confusão podia existir mesmo se a língua fosse comum, provocando guerras e batalhas terríveis.

Babilônia era uma potência e isso se manifestava através das construções, dos jardins suspensos, dos grandes palácios, culto da fertilidade com os seus ritos ligados à prostituição sagrada, realizados nos templos edificados sobre altas torres.

Dentro dessas “maravilhas” se encontrou o Povo de Deus. Depois da frustração da destruição do Templo e de Jerusalém, essas maravilhas provavelmente tentavam o povo.

É desse contexto que os autores da escola sacerdotal tomam emprestado as imagens para construir a sua história: o nome Babel (Babilônia); a grandeza das construções com suas altas torres (Ziggurat), que “tocam o céu”, porque sobre elas existem templos, onde o divino e o humano se encontram.

 

Qual é a resposta que busca o autor?

O texto começa dizendo que “todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras” (11,1). Existem muitas interpretações, principalmente na tradição rabínica, sobre essas “mesmas palavras”. Com certeza a interpretação precisa considerar o final do capítulo 10, que conta como os povos se multiplicaram, a partir das genealogias dos filhos de Noé: “foi a partir deles que os povos se dispersaram sobre a terra depois do dilúvio” (Gênesis 10,32). Começam assim os fenômenos de migração, que, desde as origens, é uma característica da grande família humana.

O autor constata que os povos migram, que as pessoas mudam de lugar, têm línguas diversas, deuses diferentes e cada um pensa de maneira singular. Diante disso ele se pergunta: essa situação foi planejada por Deus ou é uma punição? Qual é o projeto originário para a humanidade: uma só língua ou a pluralidade? Deus quer que falemos uma única língua, que sejamos um único povo?

Se o plano originário divino é que existam mais povos e diferentes línguas, a culpa dos seres humanos é exatamente o que não esperamos: querer ser um, unidos. Isso pode ser paradoxal e colocar em xeque nossa interpretação desse episódio bíblico.

Parece que, em seu plano, Deus quer a diversidade. Afinal, não é verdade que comandou: “enchei a terra”? Além disso, em Gênesis 1 é evidente que Deus cria separando: água da terra; cria animais e plantas conforme a própria espécie; ama a particularidade de cada criatura.

Se lemos as primeiras páginas bíblicas dessa maneira, os homens que constroem Babel contrastam esse plano divino através de um sonho de uniformidade.

 

Aspectos do texto que ajudam na interpretação

• Gênesis 11,2 diz que “os homens emigravam do Oriente” (miqqdem). O “Oriente” é o lugar ideal, o lugar de Deus, do Éden (Gênesis 2,8). É o lugar do início da humanidade, aquela criada pela primeira vez por Deus e também daquela “recriada”, depois do Dilúvio. Deixar o Oriente pode ser lido como uma busca por um lugar que seja próprio, longe do Senhor, afastado daquele estado originário querido por Deus. Querem deixar para trás a memória de suas origens, da sua relação com o criador, esquecendo inclusive de terem sido criados por Deus.

• Além disso, parece que esse fenômeno de migração é feito sem muita consciência, em busca de um lugar melhor, onde possam ser “um único povo”. A única motivação é o lugar, onde podem ter tudo. Em sua motivação, não existe Deus, mas existe somente um grupo de pessoas que viaja, de cabeça baixa, tendo como meta somente a satisfação das necessidades naturais. Encontram esse lugar, na Babilônia, e o encontram sozinhos: todos unidos e solidários chegaram até sua meta, objetivo da viagem.

• A viagem revela a presença de muitas línguas. Se somos acostumados a viajar, também nós percebemos que é um limite para a comunicação, uma coisa que dificulta a relação, que provoca dificuldades para se entender. Qual é a causa disso? Os homens em viagem encontram uma solução: ser um único povo, que tem um ideal comum. O único propósito desse povo é construir tijolos para “fazer uma cidade e uma torre, que chegue até o céu” (Gênesis 11,4). A solução que encontraram é em si uma coisa boa, mas do ponto de vista divino é usada para um propósito negativo: tornar-se grande, conquistar o lugar de Deus, “fazer-se um nome” (11,5).

• Deus não entra na história desses homens. Ao invés, como criador, só Deus pode dizer qual é o nome de cada um, pois o nome é a verdade da pessoa, é aquilo que ela é no seu íntimo, coisa que somente quem nos criou pode saber: Deus nos conhece desde o seio materno! Desejar fazer-se um nome sozinho, sem Deus, é uma ilusão, uma estrada errada. A consequência é que no final não existe respeito pelo outro, pois virá o desejo de impor um nome nosso, obrigando a ser aquilo que queremos.

• O objetivo dos homens que constroem a cidade e a torre é de não “serem dispersos sobre a terra” (11,5). Aqui existe uma referência à morte. O defunto é colocado na terra, disperso como cinza. Para evitar isso, se procura criar um nome, um monumento que dure para sempre. Essa salvação se busca através dos próprios merecimentos, com as próprias forças, com o próprio conhecimento, ignorando Deus, ignorando a própria raiz. O resultado é que esses homens correm o risco de se considerarem deuses: “tira Deus e fica eu”.

 

A consequência da construção da cidade e da torre

Os homens buscavam unidade e estabilidade. Ao invés, colhem divisão e dispersão. A humanidade quer chegar no céu, mas lá existe já Deus, que “baixa para ver” o que esses homens estão fazendo. Parece que Ele não existe; mas é presente e age, mudando a língua de cada um e provocando a dispersão e a cidade e torre não são completadas.

A ação divina dá à humanidade uma nova oportunidade. O homem, quando se dedica, consegue fazer as coisas más, mas também as positivas e Deus acredita nesse projeto. Nasce então Abraão, “pai de todos os povos” e através dele todos os povos dispersos sobre a terra poderão se tornar “povo de Deus”, pois é Deus que une a todos.

Babilônia não alcançará nunca o céu, mas no Livro do Apocalipse cai, deixando espaço a Jerusalém, que no tempo do Messias, desce do Céu como dom de Deus, como uma cidade que se enche de povos, de todos aqueles que terão acesso à árvore da vida e poderão entrar nela (Apocalipse 22,14).