A pergunta do Gilberto é articulada da seguinte maneira:

Para quem diz que a bíblia não é contraditória: procure saber qual foi a última frase que Jesus disse antes de morrer, ou melhor, antes de desencarnar. Você encontrará pelo menos 4 ou 5 respostas. A Bíblia tem sim grande importância na formação moral do ser humano, mas deixe de ser radical.

Como várias perguntas que aparecem aqui no site, a sua é de fundamental importância para podermos dar alguns parâmetros para quem pretende ler a Palavra de Deus, pois toca um elemento bem conhecido na teologia bíblica, que é a inerrância bíblica ou a sua infalibilidade.

O problema se põe fazendo uma análise objetiva dos textos. Tomando a sua sugestão podemos fazer a seguinte síntese:

  • Mateus: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (28,20)
  • Marcos: “Estes são os sinais que acompanharão os que tiverem crido: em meu nome expulsarão demônios... imporão as mãos sobre os enfermos e estes ficarão curados” (16,17-18)
  • Lucas: “Eis que enviarei sobre vós o que meu Pai prometeu: Por isso, permanecei na cidade até serdes revestidos da força do alto” (24,49)
  • João: “Se quero que ele permaneça até que eu venha, que te importa? Quanto a ti, segue-me” (21,22).

Fica evidente que nenhum dos 4 evangelistas coincide em relação às últimas palavras de Cristo

Para marcar ulteriormente essa realidade, lembramos, por exemplo, da narração que conta a presença do anjo no santo sepulcro, que anuncia a ressurreição de Cristo. Mateus diz que "apareceu um anjo do Senhor (28,1-2), Marco fala de "um jovem" (16,5), Lucas de "dois homens" (24,4) e João de "dois anjos" (20,1-2).

Sem tomar um texto particular, mas o conjunto dos livros, pensemos, por exemplo, na questão da violência na Bíblia. Há passagens da história de Israel onde parece que as guerras, as mortes e até mesmo homicídios eram deliberados por Deus. O povo fazia guerra e Deus era o seu General! Pensamos, por exemplo, no anjo de Deus que, no Egito, passa e mata todos os primogênitos do inimigo (veja Êxodo 12,29) e também na ordem que se acreditava dada por Deus de matar todos os inimigos, depois da guerra (herem). No Novo Testamento, ao invés, Jesus se apresenta como alguém que descarta a violência: a quem te ferir numa face, oferece a outra; a quem te arrebatar o manto, não recuses a túnica (Lucas 6,29).

 

A Bíblia ensina sempre a verdade

Partimos do princípio que tudo o que está na Bíblia foi revelado por Deus, escrito por inspiração do Espírito Santo. Resumindo, poderíamos dizer que o autor da Bíblia é o próprio Deus. Todavia, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo Ele neles e por eles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria. É por isso que sublinhamos que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus. E nesse sentido que 2Timóteo 3,16-17 ensina:

Toda a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as obras boas”.

A verdade é mais do que uma informação; é um princípio que vale sempre. A bíblia não dá informações científicas corretas, pois em relação a isso, seus autores são influenciados pela própria cultura; ela dá fundamentos, que são sempre válidos. 

 

Como explicar as contradições bíblicas

Tomemos consciência, antes de tudo, que a Bíblia não foi escrita por um autor que sentou numa cadeira e escreveu tudo, do começo ao fim, do próprio punho. É um texto feito por diferentes mãos. Isso vale também para os Evangelhos. Os 4 textos foram escritos há cerca de 40-50 anos da morte de Cristo. Dois dos autores não foram apóstolos. Haviam muitas tradições, muitas "vozes" que circulavam pelas comunidades. Com o tempo essas "vozes" podem ter se modificado, detalhes podem terem sido trocados. Os evangelistas reuniram essas vozes e colocaram por escrito. Embora provavelmente usem fontes comuns, cada um escreveu o próprio texto por conta própria, sem "combinar" com o outro. Essa distância basta para explicar as aparentes incongruências.

Normalmente se trata de detalhes, que não mudam os fundamentos de nossa fé. É importante saber por que existem essas diferenças, mas não é necessário se escandalizar com elas.

Além dessa explicação objetiva, devemos também entender a mudança de doutrina, como no caso da violência citada acima.

Para dar uma resposta a esta questão é fundamental considerar o Antigo Testamento como um conjunto de textos que foram escritos durante um período de tempo de cerca de mil anos, por um povo que viveu um desenvolvimento cultural e religioso. Na cultura semítica, por exemplo, aquilo que era conquistada através da guerra era destinado ao chefe. Os israelitas, crentes em Deus, interpretam isso à luz da própria fé: sacrificam, portanto, a Deus aquilo que conquistam com a guerra, pois Ele é o seu chefe, o único ao qual se possam atribuir as vitórias militares do povo (veja números 21,1-3).

Do ponto de vista teológico, essa passagem é importante: Deus entra dentro da história de um povo, assumindo sua cultura e categorias morais, que são muito diversas das nossas. Todavia, Deus não dá legitimidade a esses modos, mas procura fazer com que o povo cresça, desenvolva-se. Isso fica muito claro nas palavras do livro da Sabedoria, cronologicamente o último livro do Antigo Testamento (presente só nas bíblicas católicas): 

Por isso, pouco a pouco corriges os que caem, e os admoetas, lembrando-lhes as faltas, para que, tendo-se afastado do mal, creiam em ti, Senhor! (Sabedoria 12,2).