Uma das passagens mais conhecidas do Evangelho é, sem dúvidas, o milagre da multiplicação dos pães e peixes feito por Jesus, às margens do Lago da Galileia. A passagem clássica é aquela de João 6, mas nos evangelhos sinóticos encontramos duas narrações diferentes: na primeira, Jesus se encontra diante de “5 mil homens” famintos e multiplica 5 pães e 2 peixes – todos comem e sobram 12 cestas de pão (Mateus 14,13-21; Marcos 6,30-44; Lucas 9,12-17); na segunda, Jesus sacia “4 mil homens” com 7 pães e alguns peixinhos e no final se enchem sete cestos com os pedaços que sobraram (Mateus 15,29-37; Marcos 8,1-10).

Embora seja importante considerar as duas narrações, vendo principalmente o contexto, analisando as diferenças, queria propor alguns elementos de reflexão baseados no texto de João.

 

Primeira interpretação

Uma primeira leitura e interpretação estão ao alcance de todos nós. Você também poderia fazer esse exercício: tome João 6 e o leia. Reflita um momente e, em seguida, faça uma segunda leitura, sublinhando as palavras que lhe chamam sua atenção. Esse simples exercício já o conduzirá a uma interpretação do texto, que é o fruto do seu contato com o Palavra de Deus.

No exercício que fiz, sublinhei as seguintes palavras: Outra margem, grande multidão, sinal, discípulos, estava próxima a Páscoa, muita grama, Jesus agradaceu a Deus e distribuiu, todos comeram quanto queriam, sobraram dozes cestos, profeta... Dessa primeira leitura, interpreto brevemente assim esse texto:

Jesus está na sua Galileia, realizando a missão em volta do Lago da Galileia. Uma multidão o segue, porque via os sinais que fazia. Jesus não ignora essa gente; cuida dela, como um pastor cuida de seu rebanho, conduzindo-o para onde tem uma boa pastagem.

O cuidado parece difícil, porque os recursos são poucos. Mas, como se diz popularmente, o pouco com Deus é muito. Deus conhece os dons que dá a cada um de nós e sabe que se os colocamos à disposição, é o suficiente para criar um ambiente cristão propício a nos realizar como humanidade.

O fundamental é “obedecer” a Deus, pois dessa atitude deriva a salvação, vem a garantia de harmonia e os problemas se resolvem.

O elemento que desencadeia a solução é a descoberta daqueles 5 pães e dois peixes e a sua consequente distribuição, obedecendo ao comando divino. Não é fácil abrir os olhos e ver que dentro de nós temos uma potencialidade que nos permite superar as dificuldades aparentes e que Deus tem confiança nesse nosso potencial, que é graça divina.

A solidariedade da criança, que teria aceitado ceder o seu “bem”, é o elemento que transforma o nó da situação. A doação daquilo que se há para o bem da comunidade está à base do agir cristão.

Tudo isso só se descobre na caminhada que fazemos com Cristo, que nos ajuda a sermos plenamente realizados, saciados. Ele mesmo se doa como pão vivo, nosso alimento.

 

Leitura exegética

João é o último escritor da Bíblia. O seu evangelho teria sido escrito há cerca de 70 anos depois da morte de Cristo. João transmete uma visão teológica bastante desenvolvida, pois o tempo permitiu ao apóstolo e à sua comunidade de progredir na compreensão do mistério da encarnação do Filho de Deus.

O milagre da multiplicação dos pães e peixes, no Evangelho de João é colocado dentro do assim dito “livro dos sinais”, que vai de 1,19 até 12,50. São 7 “sinais” que o evangelista apresenta para mostrar como diferentes tipos de pessoas passam a acreditar em Cristo, enquanto que provoca alguma dificuldade entre os judeus. A multiplicação dos pães é, para João, o quarto sinal.

João faz a leitura da vida de Cristo de maneira particular, ligando-a à história de Israel, ao percurso realizado pelos hebreus no Antigo Testamento. Dentro dessa perspectiva, é importante ligar esse evento com a multiplicação dos pães feita por Eliseu em 1Reis 4. Mas não só: a multiplicação dos pães de João está intimamente ligada à Páscoa. Há vários elementos que fazem a ligação entre Jesus é a história protagonizada por Moisés:

  • Jesus passa ao outro lado do lago (1-2): recorda o prodígio de Moisés, que liberta o povo escravo no Egito, atravessando o Mar Vermelho;
  • Jesus subiu a montanha e sentou-se aí com seus discípulos. Estava próxima a Páscoa, festa dos judeus (3-4): depois da passagem do Mar Vermelho, o povo caminha pelo deserto, sem o que comer; será o Maná, mandado por Deus, que lhes ajudará a sobreviver. Além disso, a montanha é sempre o lugar da revelação, recorda o Sinai, aonde o dom da Lei é dado ao povo.
  • Havia muita grama naquele lugar (10): Como o pastor Moisés, que buscava liderar o povo, seu rebanho, Deus procura o bem dos seus servos; cuida deles, tem um olhar cheio de compaixão.
  • Todo o capítulo é um discurso sobre o pão de vida: o alimento encontrado milagrosamente, sem dúvida, relembra o Maná do deserto. A esse propósito poderíamos recordar o rejeito e a crítica dos judeus no versículo 40, por que Jesus tinha dito “eu sou o pão que desceu do céu”. Essa bronca dos judeus lembra claramente a reação dos hebreus no deserto (veja Êxodo 16,2.8).

Se Moisés é o profeta que liberta o povo, provisoriamente, Jesus traz uma revelação da parte do pai, de maneira que se deve acreditar nele para ter a vida eterna: 

Quem vem a mim não terá mais fome, e quem acredita em mim nunca mais terá sede (6,35)

 

Outras pistas para a reflexão

Um detalhe interessante que podemos tirar da narração de João é a reação dos apóstolos e de todo o público, colocando-nos também nós, através deles, diante do texto, com nossas reações à proposta de Jesus.

Em relação aos apóstolos, aparecem Filipe e Andrea.

A Filipe – e também a nós, Jesus pergunta: «Onde vamos comprar pão para eles comerem?» Filipe responde que nem meio ano de salário bastaria para dar um pedaço de pão para cada um. A questão é muito prática: o povo tem fome. A resposta de Filipe, que é de origem grega e representa a razão, se baseia na lógica e possibilidades humanas para resolver o problema, comprando uma solução. Mas humanamente não existem soluções para matar a fome do povo. Parece, que no fundo, Filipe pensa que se o povo segue a Jesus, a fome é um problema deles. Jesus, ao invés, diz que é um problema do apóstolo. E ele diz que não tem as forças necessárias, que não sabe resolver a questão. É o desafio que Jesus coloca aos apóstolos: não podem ignorar os problemas da multidão e não podem também se fundamentar em suas próprias forças, pois nunca bastará somente o pão para superar as dificuldades mais pesadas. É necessário contar sempre com a graça de Deus, pois a vida segue graças à intervenção divina.

Aparece também André, pescador e trabalhador concreto: tem um garoto com pães e peixes. André parece dizer que a solução está fora dele. Ele também é fraco, por que vê a solução somente em base às suas capacidades e propriedades e se julga incapaz de resolver, mostrando a solução fora de si mesmo.

No final, todos descobrem que o próprio pão pode ser o suficiente para resolver o problema. Esse é outro erro; não entendem a ação de Jesus e veem somente que a fome foi saciada. Por consequência, consideram a Jesus como um profeta e querem que seja o rei deles. Mas esse nível material não é aquilo que quer ensinar Cristo.

A mensagem final é que Deus se apoia na nossa vida, mesmo se somos pobres e simples. Ele conta sempre conosco. Os pães e peixes do garoto, de quem nem conhecemos o nome, é pouco, mas nas mãos de Jesus são abundantes.