A passagem do Apocalipse em questão é o capítulo 12, a visão da mulher e do Dragão, que começa assim:

Apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida com o sol, tendo a lua debaixo dos pés, e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas. 2 Estava grávida e gritava, entre as dores do parto, atormentada para dar à luz. 3 Apareceu, então, outro sinal no céu: um grande Dragão, cor de fogo. Tinha sete cabeças e dez chifres. Sobre as cabeças sete diademas. 4 Com a cauda ele varria a terça parte das estrelas do céu, jogando-as sobre a terra. O Dragão colocou-se diante da Mulher que estava para dar à luz, pronto para lhe devorar o Filho, logo que ele nascesse. 5 Nasceu o Filho da Mulher. Era menino homem. Nasceu para governar todas as nações com cetro de ferro. Mas o Filho foi levado para junto de Deus e de seu trono. 6 A Mulher fugiu para o deserto. Deus lhe tinha preparado aí um lugar onde fosse alimentada por mil, duzentos e sessenta dias.

 

Entendendo o simbolismo do Apocalipse

Sabemos que para bem entender a mensagem desse livro é mister ser capaz de ler o significado dos símbolos usados e o contexto da literatura apocalíptica, que condiciona o texto atribuído a João. Precisa, antes de tudo, saber que o poder do símbolo não pode ser limitado a uma realidade definitiva, mas sobrevive a interpretações e se renova a cada leitura. Uma leitura do Apocalipse, feita durante o percurso histórico da sua interpretação, não pode ser dogmatizada como a única verdadeira. As palavras desse livro são vivas sempre e se atualizam.

 

Quem é a mulher?

A história interpretou de tantas maneiras essa personagem de João. Muitas leituras identificaram essa mulher com Nossa Senhora, encontrando aqui, nessa passagem, as características iconográficas da Imaculada Conceição. Seria essa uma interpretação correta?

Para bem entender, precisamos recordar que essa é a segunda “mulher” que aparece no Apocalipse. Em 2,20-25, na carta dirigida a Tiatira, foi mencionada Jezabel, a primeira mulher:

Mas, há uma coisa que eu reprovo: você nem sequer se incomoda com Jezabel, essa mulher que se diz profetisa. Ela ensina e seduz meus servos a se prostituírem, comendo carne oferecida aos ídolos. 21 Já dei um prazo para ela se converter. Mas ela não quer largar a sua prostituição. 22 Vou lançá-la num leito de doença, e aos que cometem adultério com ela vou lançá-los numa grande tribulação, a menos que se convertam de sua conduta. 23 Farei também com que os filhos dela morram, para que as igrejas fiquem sabendo quem eu sou: conheço bem dentro de cada um, os rins e o coração; vou retribuir de acordo com a conduta de cada um. 24 Sei que muitos de vocês em Tiatira não seguem essa doutrina, não conhecem as ‘profundezas de Satanás', como dizem eles.

Nesse texto se encontra a chave para entender a segunda “mulher” do Apocalipse. As duas figuras femininas têm elementos que são colocados em contraste. A primeira é inimiga de Cristo e amiga de Satanás e a segunda, ao contrário, é inimiga de Satanás.

A mulher de Apocalipse 12 é representada “vestida com o sol, tendo a lua debaixo dos pés, e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”. Essas características não são só enfeites, mas transmitem uma mensagem, que se esclarecem a partir da leitura do sonho de José, narrado em Gênesis 37. A passagem mostra o jovem patriarca que conta aos irmãos o sonho que teve: «Tive outro sonho: o sol, a lua e onze estrelas se prostravam diante de mim» (Gênesis 37,9). Tal sonho suscitou a raiva dos irmãos e, em certo sentido, também do pai, que interpreta corretamente o seu significado: «Que sonho é esse que você teve? Quer dizer que eu, sua mãe e seus irmãos vamos prostrar-nos por terra diante de você?» (Gênesis 37,10). A simbologia é evidene e mostra os patriarcas que fundam Israel: Jacó (sol), Raquel (Lua) e os 11 irmãos de José.

Israel, em hebraico, é um termo feminino e sempre foi representado por uma mulher na tradição profética do Antigo Testamento.

Por isso, é lógico concluir que a mulher do Apocalipse é uma representação celeste de Israel, aquele fiel que é também o cristianismo verdadeiro, como se vê no final do capítulo, onde João diz que são os “os que obedecem aos mandamentos de Deus e mantêm o testemunho de Jesus (12,17).

É importante, por último, notar que a mulher está no céu, lugar onde acontecem as visões, fora de espaços temporais e espaciais. Isso permite ao autor passar entre passado, presente e futuro. Assim, o vegene vê diante dos olhos os eventos da história da salvação, que compreende a história de Israel, aquele próprio do seu tempo e também o nosso, aquele do leitor atual.

 

O filho varão da mulher

Não é possível aplicar a informação contida em 12,5 para ler uma clara menção à Maria, mãe de Jesus. De qualquer forma, é verdade que estamos diante de um parto messiânico: um parto celeste de um “homem”, que é ‘tirado’ da mãe e ‘levado para junto de Deus’, esperando eventos futuros não muito claros. É provável que não se trata de uma visão da história linear, mas a explicação que o plano de salvação divino foi pensado desde sempre e que o demônio se opõe a esse plano, que compreende a vinda do salvador, que vem para combater o pecado do demônio.

De qualquer forma, visto que a intepretação dos símbolos do Apocalipse não é uma questão fechada, fica sempre a possibilidade de acolher interpretações históricas, que viram nessa imagem a figura da mãe de Deus, que representa um momento importante da História da Salvação.