O nosso leitor, do Moçambique, continua a sua pergunta:

A igreja católica enganou todo mundo? E Davi cometeu adultério, mas seu filho Salomão não, apesar de várias esposas? Poligamia e o Cristianismo.

Apesar da resposta postada aqui no site há algum tempo atrás, volto à questão, que pode despertar muito interesse.

Diante da sua pergunta, existem muitos elementos para tratar, que poderíamos sintetizar nesse elenco: a parábola, o papel da Igreja Católica, o comportamento de Davi, as esposas de Salomão e a poligamia em geral. Tratemos de cada um.

 

A poligamia entre os judeus

A poligamia nunca foi proibida pelo Antigo Testamento, pela Bíblia Hebraica. Personagens importantes da história de Israel tiveram mais de uma esposa: Abraão, Jacó, Davi e Salomão são alguns exemplos.

Uma leitura atenta mostra, todavia, que todos os casos de poligamia dos patriarcas eram provocados por razões especiais. Abraão se casou com Hagar só depois que Sará o sugeriu para ele, porque ela e Abraão não podiam ter filhos (Gênesis 16). Jacó também se casou com Lia somente porque foi enganado por Labão; ele na verdade queria ter se casado com Raquel (Gênesis 29). Depois se casa também com Bala e Zelfa porque as suas duas primeiras mulheres o aconselharam.

Mesmo assim, é verdade que a Torah nunca proibiu a poligamia.

Aproximadamente mil anos atrás, o Rabino Guershom ben Juda (955 – 1028) proibiu a poligamia entre os judeus. E esse decreto foi acolhido entre os judeus asquenazi, mas não é considerado uma lei para as correntes judaicas sefarditas e iemenitas.

O fato que a maioria dos judeus vive em regiões onde a poligamia não é legal, ela praticamente não é mais praticada pelos judeus.

É evidente, tanto a partir da leitura dos textos do Antigo Testamento quanto da literatura rabínica da tradição judaica que a poligamia não era uma situação ideal. Textos místicos judaicos falam repetidamente do marido e da esposa como duas metades de um todo. E é interessante e revelador o fato que no Talmude o no Midrash nunca aparece a menção de uma família poligâmica. É provável que essas situações existiam, mas nunca foi vista como um exemplo e uma situação normal.

É provável que a poligamia foi aceitada como uma situação extrema que permitissem aos homens casados com esposas estéreis de ter filhos sem se divorciar das esposas que amavam. Ao mesmo tempo, os monarcas usaram a poligamia como maneira de fortalecer o poder, fazendo uso do matrimônio para estabelecer alianças com outros grupos e assim garantir o poder.

 

Davi e as esposas de Salomão

Em parte, já respondemos acima as razões que podem ser consideradas como o contexto que deu origem às situações bem conhecidas da vida desses dois reis de Israel. 

Davi, além das inúmeras esposas (veja 2Samuel 3,2-5), cometeu um grande pecado, tomando a mulher de um dos seus soldados. Isso lhe custou a morte do filho e, depois da denúncia divina, através do profeta Natã, exigiu dele a conversão (2Samuel 11 – 12).

Salomão, conta aBíblia, teve muitas mulheres (veja a história de Salomão a partir de 2Reis 3 e sobre as várias mulheres, leia 1Reis 11). Mas diz também que elas foram causa de irritação de Iahweh.

O livro do Cântico dos Cânticos, que foi escrito bem depois do terceiro rei de Israel, é atribuído a Salomão. Ele é um hino à monogamia, ao amor entre o amado e sua amada. A atribuição pseudoepígrafa a Salomão precisa ser vista na perspectiva histórica. O autor bíblico, através desse recurso literário, quer mostrar que o Salomão ideal não é aquele das 1000 concubinas, mas o rei que se dedica e ama a uma pessoa.

 

A parábola das 10 virgens

Quando nos deparamos com uma parábola, a primeira coisa que precisamos fazer é nos despojar da tentação de ler a narração como um evento histórico. É uma estória, inventada, que usa vários elementos simbólicos para transmitir uma mensagem, sem a preocupação de ser fiel à realidade dos fatos. Visto que o autor não quer transmitir informações históricas, quando conta uma parábola, o leitor não tem o direito de buscar nela elementos históricos. Deve simplesmente verificar os detalhes simbólicos que ajudam a entender a mensagem. Fazendo um paralelo, seria o mesmo se tentássemos descobrir elementos históricos no conto do Chapeuzinho Vermelho ou outro conto de fadas dos Irmãos Grimm.

A parábola das 10 virgens toma como background a corte e a vida dos reis onde certamente existia a poligamia. Mas os elementos ali presentes, que representam o cenário, não têm nenhuma função de conteúdo, mas servem só para transmitir uma mensagem muito clara: é preciso estar preparado para a chegada do Senhor!

 

O papel da Igreja Católica em relação à poligamia

Essa preocupação em definir uma eventual culpa da “igreja católica” é muito preconceituosa e pressupõe os conflitos existentes hoje entre as diversas confissões, especialmente entre católicos e evangélicos. Esse conflito não existiu durante os primeiros mil anos da Igreja; a Igreja era una e o que se definiu naquele período foi definido não pela “igreja católica”, mas pela Igreja, tronco ao qual estão ligados todos os ramos do mundo cristão, afinal um ramo não pode viver sem um tronco. A Igreja do primeiro milênio é uma herança também para os evangélicos.

Em relação à poligamia nunca foi uma atitude cristã, pois não condiz com o ensinamento de Cristo sobre o matrimônio, que vê na união do homem e da mulher a formação de uma só carne. Além disso, a poligamia fere a princípios fundamentais do casamento, que são a união com uma única pessoa e a fidelidade para sempre à pessoa amada.