Assim continua a pergunta da nossa leitora:
Em que Paulo se baseia para espalhar tal ideia? Jesus declarou que não veio ao mundo para mudar as leis. E se nem mesmo Cristo mudou as leis, poderia Paulo mudar as ordens que DEUS deu ao povo? Peço que o autor da resposta cite de qual igreja pertence.
Paulo não condena a circuncisão e nem cria uma nova regra, mas, seguindo a tradição profética, separa a fé da circuncisão.
A circuncisão: sinal da aliança
A circuncisão, a remoção do prepúcio do órgão genital masculino, é um elemento que caracteriza a vida religiosa do Antigo Testamento, a história dos hebreus, além de ser presente também em outras religiões.
Na Bíblia, um texto fundamental é Gênesis 17, quando Deus sela com Abraão uma aliança: “serás pai de uma multidão de nações”. E o sinal da aliança é a circuncisão:
“E eis a minha aliança, que será observada entre mim e vós, isto é, tua raça depois de ti: todos os vossos machos sejam circuncidados” (Gênesis 17,10).
A circuncisão não nasceu nesse momento, mas era uma prática comum no mundo de então e provavelmente era um rito de iniciação ao casamento e à vida do clã. Nesse evento de Abraão torna-se um sinal, como fora o Arco-Íris depois do dilúvio, com Noé. O sinal da circuncisão lembrará a Deus a sua aliança e ao homem sua pertença ao povo escolhido e as obrigações que daí decorrem.
A Torá, a Lei, fala desse preceito em duas ocasiões: Êxodo 12,44 (só os circuncisos podem participar da Páscoa) e Levítico 12,3 (circuncisão no 8 dia de vida da criança).
É provável que ganha muita importância a partir do momento em que os judeus passam a conviver com outros povos, como acontece na época do Exílio na Babilônia e em outros momentos da história (veja 1Macabeus 1,60ss).
Apesar dessa índole legal, é importante sublinhar que já os profetas alertavam para uma prática meramente exterior, e começavam a falar da necessidade de compensá-la com um comportamento que tivesse raízes mais profundas, no coração. Para Jeremias, por exemplo, este sinal nada significa, se não corresponde à fidelidade interior, a “circuncisão do coração”: ‘Circuncidai-vos para Iahweh e tirai o prepúcio de vosso coração’ (Jeremias 4,4).
Paulo e a circuncisão – Paulo e a Lei
Paulo era um judeu circunciso e não aboliu a circuncisão. Ele muda de perspetiva, seguindo a linha já presente nos profetas e também quanto dito no Concílio de Jerusalém. Na linha de Jeremias, Paulo interpreta a circuncisão como “selo da justiça da fé” (Romanos 4,11), colocando o acento sobre a fé e não sobre a circuncisão: Abraão se torna circunciso como uma confirmação da fé que tinha; ele não teve fé por causa da circuncisão, mas foi circunciso porque acreditou em Deus. Quero repetir aqui todo esse texto de Paulo, porque creio que dá a resposta que você procura. Leiamos com atenção Romanos 4,4-12:
4 Para quem trabalha, o salário não é considerado como gratificação, mas como dívida; 5 para quem não trabalha, mas crê naquele que torna justo o ímpio, sua fé lhe é creditada como justiça. 6 É desse modo que Davi proclama feliz o homem a quem Deus credita a justiça, independente das obras: 7 «Felizes aqueles cujas ofensas foram perdoadas e cujos pecados foram cobertos. 8 Feliz o homem a quem o Senhor não leva em conta o pecado.» 9 Essa felicidade é só para os circuncidados, ou é também para os não circuncidados? Nós dizemos que a fé foi creditada a Abraão como justiça. 10 Mas, quando é que lhe foi creditada? Quando já era circuncidado ou quando ainda não era? Certamente não depois da circuncisão, mas antes. 11 De fato, ele recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça que vem da fé, que ele já tinha obtido quando ainda não era circuncidado. Assim é que ele se tornou pai de todos os não circuncidados que acreditam, para que a justiça fosse creditada também para estes; 12 e se tornou pai também dos circuncidados, daqueles que não só receberam a circuncisão, mas que também seguem a trilha da fé que teve Abraão, nosso pai, antes de ter sido circuncidado.
Esse texto vem logo depois da famosa passagem que levou à “sola fide” de Lutero, isto é, o fundamento da teologia da justificação protestante. Em 3,21 seguintes, Paulo mostra aos Romanos que “independente da Lei”, Deus dá “a todos os que creem” a justificação, “gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus” (3,24).
Depois de expor essa sua teoria da justificação, Paulo busca uma prova nas escrituras para a sua tese e o evento que apresenta é a circuncisão de Abraão, como contado em Gênesis 17. Nesse episódio, como disse acima, o que conta é a fé de Abraão, que vem antes do gesto legal, do qual a circuncisão é a expressão.
O nó da questão é a expressão “independente da Lei”. De fato, essa expressão paulina parece nos libertar dessa “Lei”. Que “lei” é essa? Quais são as “obras da lei”, que não justificam?
Em outra carta de Paulo, 1Coríntios, descobrimos que alguns cristãos pensavam que a proposta era a libertação das leis éticas. Eles diziam “tudo me é permitido” (1Cor 6,12). Mas Paulo rebate dizendo que o cristão não é um libertino, não está livre de fazer o bem. Segundo a sua moral, a questão para Paulo não é definir o que é permitido e o que é proibido, mas determinar o que favorece ou prejudica a criatura nova, regenerada em Cristo, que veio para todos e não somente para um grupo caracterizado por certos comportamentos predefinidos.
Paulo combate a Lei que cria um muro, que separa, necessária um tempo para manter a identidade religiosas dos judeus em meio à repressão e à tentativa de mudanças dos costumes religiosos. Contra a ameaça externa (helenismo, por exemplo), os judeus precisaram reforçar a própria identidade, que se caracterizava por um conjunto de comportamentos que iam desde a ética até a observância ritual que determinavam a identidade do homem justo.
O acento de Paulo está na gratuidade da justificação de Cristo, coisa enfatizada na Carta aos Gálatas:
“Em Cristo Jesus não é a circuncisão ou a não circuncisão que vale, mas a fé que age através da caridade” (Gálatas 5,6).
A tentação da Lei
Hoje vivemos em um tempo em que, quem sabe, seria cômodo ter uma Lei que nos identifique de maneira clara. Poderíamos comparar a nossa era àquela vivida pelos judeus no III século antes de Cristo, quando tiveram que enfrentar a cultura helênica, o modo de vida proposto pelos gregos, que se tornava a cultura universal de então: uma cultura aparentemente racional, uma cultura politeísta, aparentemente tolerante, que forçava a uniformidade cultural. O mundo de hoje não é um pouco assim? Como o helenismo naquela época ameaçava a identidade de Israel, o mundo de hoje não ameaça a identidade do cristão, que parece obrigado a entrar nessa identidade comum, perdendo consequentemente a própria identidade, a própria fé transmitida pelas gerações passadas?
No tempo do helenismo a interpretação farisaica criou um complexo legal graças ao qual os judeus conseguiram preservar a própria identidade. Hoje, novos grupos parecem querer criar outros sistemas legais parecidos, para evitar que os cristãos se contaminem com o mundo em que vivem. Paulo, considerando a justificação operada por Cristo, retém que a proposta farisaica não seja mais necessária e combateria também as propostas fundamentalistas desses grupos, por que o foco é errado, não centrado em Cristo.
Não precisamos criar um muro de distinção, um escudo de defesa que proteja a nossa preciosa herança de fé, que consista na observância de leis fundamentalistas. O muro não é mais necessário, pois com a ressurreição de Cristo tudo mudou radicalmente. Agora é Cristo que nos protege do politeísmo e de todas as suas ciladas, unindo-nos uma vez para sempre com o único Deus.