Na verdade, a pergunta resumida acima chegou até nós de maneira mais elaborada. Aqui o texto completo:
Meu namorado é divorciado e é evangélico. O primeiro casamento foi na igreja e no cartório. Houve divórcio por causa de adultério. Dois anos depois, ele casou novamente, porém só no civil. E se divorciou novamente. E agora ele quer se casar comigo na igreja e no cartório.
Na opinião de vocês, qual casamento é válido, o meu ou o segundo? Lembrando que o primeiro foi adultério e infidelidade do voto matrimonial, ou seja, ele tem o direito de casar novamente. Foi o que ele fez, mas foi só no cartório.
Oi, Are. Não quero que essa resposta soe como um juízo sobre o seu caso, mas seja uma reflexão que possa ajudar a pensar o nosso ser seguidores de Cristo. Não dou uma resposta pronta, mas convido à reflexão e deixo você mesma tirar uma conclusão.
Estranho mundo
Há um pouco de tempo observo uma tendência na sociedade, analisando principalmente o mundo político, mas não só. Existe um retorno a proclamar-se cristão, a cumprir o próprio mandato começando com uma cerimônia religiosa, de promessa, às vezes até jurando sobre a Bíblia. Penso em políticos da América do Norte (Steve Bannon), da Europa (Salvini), mas também do nosso Brasil. O problema é que essas pessoas, com suas vidas privadas, sobretudo em relação à família, são pouco coerentes, com uma moral cristã contestável, com uma conduta que não tem muito a ver com a Boa Nova anunciada por Cristo. Esses mesmos políticos pseudo-cristãos podem tranquilamente, depois de ter jurado sobre a Bíblia, defender a pena de morte, rejeitar a presença do estrangeiro ou descriminar as pessoas mais humildes.
Hoje em dia muitos pensam que ser cristão é seguir uma igreja. A mensagem de Cristo pode ser relativizada, se estamos dentro de uma aparência que “salva” o nosso ser cristão. Esse viver de fachada é a coisa mais condenável que exista, pois Deus pede de nós uma integridade de vida, um abraçar a Boa Nova de maneira radical, não na aparência, mas no dia-a-dia, com gestos concretos. Em concreto, com relação ao casamento, não posso entender um cristão que pense que casar três vezes seja algo normal. Digo bem: um cristão. Afinal, precisamos reconhecer que Deus propõe e não obriga ninguém a aceitar o que diz. Todavia, se não aceito a sua mensagem não posso me definir “cristão”, não posso jurar sobre a Bíblia. Acredito que o ser humano é livre de ver o casamento como um contrato temporário, até que dure, regulado por leis civis que defendam os direitos constitucionais de cada um. Mas não aceito que um cristão pense assim, pois é contrário ao ensinamento de Cristo. Um cristão tem que aceitar o fato do casamento ser indissolúvel, para toda a vida, afinal a palavra de Cristo é muito clara, como veremos abaixo.
O que é inaceitável é ver as pessoas se dizerem cristãos e fazer o que querem. Quem coloca a mão no arado, não pode olhar para trás. Não somos obrigados, mas temos que ser coerentes com a escolha. A liberdade é um dom divino e quem escolhe diversamente merece o nosso respeito.
Outra verdade é a nossa fraqueza. Seguir a Cristo não é fácil para ninguém. Mesmo abraçando a sua proposta, com as melhores intenções, às vezes acontece que não conseguimos ser fieis, pois, como diz Paulo na Carta aos Romanos, acontece frequentemente que “faço o mal que não quero e não o bem que quero”. Isso faz parte da natureza humana, mas é uma consequência da nossa fraqueza e não um ponto de partida. Essas nossas caídas são colocadas nas mãos do Deus misericordioso, mas não devem ser o nosso princípio.
A importância do casamento para um cristão
É comum, mesmo em certo ambiente cristão, ouvir dizer que o divórcio existe na Bíblia. Existia no Antigo Testamento, mas Jesus se pronunciou de maneira clara sobre isso e não podemos escondê-lo. Ele considerou o matrimônio como uma coisa séria, de fundamental importância. Durante toda a história bíblica o casamento foi usado como uma metáfora e sinal da aliança do Senhor com o povo: um vínculo entre duas pessoas que dura a vida toda, mesmo diante da infidelidade, como se comporta Deus com o seu povo escolhido. O casamento, por isso, vivido com profundidade, recorda e significa o mistério do amor de Deus para com Israel, seu povo escolhido, e para com cada um de nós.
Jesus e o casamento
Como dito acima, a doutrina de Jesus sobre o casamento é muito clara. A passagem emblemática é Mateus 19,3-6. O texto tem como pano de fundo uma controvérsia entre os judeus do tempo de Cristo. Entre eles haviam alguns que toleravam o divórcio e outros que não o aceitavam. Há vestígios de uma clássica discussão entre dois mestres daquele tempo, Hilel e Shamai, sobre os motivos que justificavam a separação. De fato, no Antigo Testamento, na lei de Moisés, o homem pode se divorciar de sua esposa, conforme é descrito em Deuteronômio 24, por qualquer motivo (se ela não encontra mais graças aos olhos do homem). Sobre essa questão intervém Jesus, dizendo:
Não lestes que desde o princípio o Criador os fez homem e mulher? e que disse: por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne? De modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar.
Repetindo, o ensinamento de Jesus sublinha a indissolubilidade do matrimônio. É verdade que em Mateus, em 19,9, o texto insinua que se pode repudiar a mulher em caso de “porneia”, mas a maioria dos exegetas concorda que é uma exceção particular que se aplica à comunidade judaico-cristã de Mateus, visto que nos outros textos que falam do mesmo discurso de Jesus citado por Mateus (Marcos 10,11s; Lucas 16,18 e 1Coríntios 7,10s) não se acena a nenhuma exceção. É provável que na comunidade de Mateus se aceite o divórcio em casos de casamentos não conformes à norma judaica, por exemplo casamentos incestuosos (veja aqui).