O nosso leitor tem razão. Segundo João, resulta evidente que no ano em que Jesus morreu a festa hebraica caiu num sábado. E os judeus, tradicionalmente, se reúnem para a ceia pascal na noite do dia anterior, que, nessa ocasião, segundo João, teria sido numa sexta-feira. Por que então Jesus, segundo os 4 evangelistas, faz a ceia com os apóstolos na quinta-feira?

 

A última ceia, para João, não é uma ceia pascal

João 19,31 diz que os judeus pediram a Pilados para que os corpos não ficassem na cruz durante o sábado, “porque esse sábado era grande dia”. O mesmo versículo diz que era a “parasceve”, isto é o dia de preparação para a festa do Sábado, isto é, uma sexta-feira. Em João 18,28 se diz que na manhã do mesmo dia, “não entraram no pretório (de Pilatos) para não se contaminarem e poderem comer a Páscoa”. Portanto, além de ser vigília do Sábado, era também vigília da Páscoa. Assim, quando Jesus foi processado, condenado e crucificado era uma sexta-feira. Portanto, a Páscoa daquele ano, segundo João, caiu num sábado, coincidindo com o Shabat.

Diante do quadro de João, a situação cronológica dos últimos dias de Jesus é bastante clara: na quinta-feira a noite Jesus ceia com seus discípulos, lava seus pés, em seguida vai ao Getsêmani onde é preso. Durante a noite é processado por Caifás e, na sexta de manhã, é levado diante de Pilatos, que o condena à morte. Ao meio dia é crucificado e, às três da tarde, morre. Logo em seguida, antes do pôr do sol, visto que começa o Sábado e, contemporaneamente, a festa da Páscoa, é tirado da cruz e colocado no sepulcro.

Diante desse quadro, como fez o nosso leitor, é normal se perguntar: por que Jesus faz a ceia na quinta-feira e não na sexta-feira, como todos os outros judeus, na vigília da festa da Páscoa?

Como já anunciado no subtítulo, a resposta é simples: em João, a última ceia não pretende ser uma ceia pascal. Essa ceia, conforme descrita por João, parece uma janta de adeus, quando Jesus conforta seus discípulos, insistindo sobre o mandamento do amor.

 

Nos evangelhos sinóticos

Considerando, ao invés, os outros três evangelhos, a situação se complica. Eles dão um quadro cronológico diferente e surpreendente. Eles dizem que “no primeiro dia dos ázimos, quando se imolava a Páscoa” (Marcos 14,12), Jesus mandou os discípulos prepararem a sala para a ceia pascal, que se realizaria aquela noite. A indicação, portanto, é clara: estamos na vigília da festa da Páscoa. Tudo o que vem em seguida (janta, agonia no Getsêmani, prisão, processo, crucificação e morte) acontece no dia da festa da Páscoa. De tardezinha, “sendo dia da Preparação, isto é, a véspera de sábado” (Marcos 15,42), o corpo de Jesus é colocado no sepulcro.

Para os evangelhos sinóticos, portanto, naquele ano a festa da Páscoa caiu numa sexta-feira e a última ceia foi uma ceia pascal, conforme a tradição judaica.

 

Divergência entre João e os Sinóticos

Temos, portanto, uma grande divergência nas duas cronologias apresentadas, com referência à Páscoa de Jesus, entre o que contam o Evangelho de João e os outros três. Para João, Jesus morreu enquanto no templo se imolavam os cordeiros para a ceia da páscoa, enquanto que os sinóticos dizem que a morte de Cristo aconteceu no próprio dia da Páscoa.

A Páscoa, para os judeus (celebração da saída do Egito), pode cair em qualquer dia da semana, pois é ligada à primeira lua cheia de primavera. Em outras palavras, a Páscoa dos judeus acontece no dia da primeira lua cheia depois do início da primavera no hemisfério norte, no dia 14 de Nisan.

A divergência está, portanto, no fato de determinar em que dia caiu a Páscoa dos judeus naquele ano. Por outro lado, como dissemos acima, as informações sobre os dias da semana em que os fatos aconteceram resultam iguais em todos os 4 evangelhos: a ceia aconteceu na quinta-feira e Jesus morreu na sexta-feira e ressuscitou no domingo.

 

Como entender essa diferença?

É uma questão que levantou muitas hipóteses. Alguns tentaram harmonizar as duas linhas cronológicas em base a calendários diferentes, um usado no Templo e o outro em Qumrãn, fazendo com que as duas versões dos evangelhos coincidissem: Jesus teria feito a ceia da páscoa conforme o calendário essênio, baseado na lua, enquanto no Templo, os sacerdotes seguiam um calendário baseado no sol. Mas essa proposta provoca outros problemas, sendo o principal que, conforme o calendário essênio (Qumrãn), a ceia não teria sido na quinta, mas na terça-feira.

Se não é possível encontrar uma solução como aquela proposta acima, significa concordar com o fato que uma das duas tradições não é correta, tendo sido alterada pelos evangelistas.

Sublinhando alguns elementos presentes nas duas tradições, parece que a versão de João seja a mais coerente. É provável que a ceia do Senhor não tenha sido uma verdadeira ceia pascal, mas que ele tenha inaugurado uma “nova” Páscoa, a sua. Essa hipótese se confirma também pelo fato que também os sinóticos, mesmo sublinhando o caráter pascal tradicional judaico da ceia, apresentam um elemento novo: a instituição da eucaristia.

Na verdade, também nos sinóticos faltam elementos tradicionais da ceia pascal que celebra a libertação do povo da escravidão no Egito, pois o pão e o vinho, como elementos da “última ceia”, não são os únicos da tradição judaica; falta uma menção ao cordeiro, que era o elemento central da ceia pascal judaica.

É provável que os sinóticos fizeram artificialmente a ligação entre a última ceia com a Páscoa Judaica, mas que originalmente a “última ceia” de Jesus não foi uma celebração da Páscoa conforme a tradição judaica.