Como já tivemos ocasião de mencionar aqui no site, esse evento, contado pelos 4 evangelistas, aconteceu durante a prisão de Cristo pelos soldados dos religiosos de Jerusalém. Somente João menciona que a vítima da ação do apóstolo Pedro foi uma pessoa chamada Malco. Nada sabemos dele, exceto que era um "servo do Sumo Sacerdote".

Tentando responder a sua pergunta, que penso ser muito importante para compreender a mensagem divina, proponho notar um elemento que provavelmente passe despercebido durante nossa leitura da Paixão de Cristo.

 

A espada na narração da Paixão de Cristo

Para entender o milagre de Jesus, poderia ser interessante notar a menção da espada na narração daquilo que acontece na quinta-feira santa. O uso desse elemento, que nos dias de hoje poderíamos simplesmente entender como uma arma que gera combate e guerra, precisa ser recordado também no contexto da clássica frase dita por Jesus: "Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada" (Mateus 10,34).

Para relembramos o que aconteceu na quinta-feira santa, podemos seguir a leitura de Lucas 22.

 

A hora do combate – Lucas 22,35-38

Jesus perguntou aos apóstolos: «Quando eu enviei vocês sem bolsa, sem sacola, sem sandálias, faltou alguma coisa para vocês?» Eles responderam: «Nada.» Jesus continuou: «Agora, porém, quem tiver bolsa, deve pegá-la, como também uma sacola; e quem não tiver espada, venda o manto para comprar uma. Porque eu lhes declaro: é preciso que se cumpra em mim a palavra da Escritura: ‘Ele foi incluído entre os fora-da-lei’. E o que foi dito a meu respeito, vai realizar-se.» Eles disseram: «Senhor, aqui estão duas espadas.» Jesus respondeu: «Chega!»

A hora do poder das trevas – Lucas 22,47-53

Enquanto Jesus ainda falava, chegou uma multidão. Na frente vinha o chamado Judas, um dos Doze. Ele se aproximou de Jesus, e o saudou com um beijo. Jesus disse: «Judas, com um beijo você trai o Filho do Homem?» Vendo o que ia acontecer, os que estavam com Jesus disseram: «Senhor, vamos atacar com a espada?» E um deles feriu o empregado do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. Mas Jesus ordenou: «Parem com isso!» E tocando a orelha do homem, o curou. Depois Jesus disse aos chefes dos sacerdotes, aos oficiais da guarda do Templo e aos anciãos, que tinham ido para prendê-lo: «Vocês saíram com espadas e paus, como se eu fosse um bandido? Todos os dias eu estava com vocês no Templo, e nunca puseram a mão em mim. Mas esta é a hora de vocês e do poder das trevas.»

 

No primeiro bloco parece que Jesus pede aos discípulos que adquiram espadas para um combate. O que Jesus quer dizer, com certeza, é que se trata de um combate. Na primeira missão dos discípulos, tudo aconteceu bem. A missão definitiva é diferente e Jesus experimentará na própria pele o quanto será difícil. Mencionando Isaías 53,12: ‘Ele foi incluído entre os fora-da-lei’, Lucas aplica à paixão de Cristo o oráculo do Servo do Senhor. É assim que, em Atos dos Apóstolos 3,13, Lucas dará a Jesus o título de “Servo”.

Segundo Isaías, mesmo tendo algumas características régias: deve exercer um poder que também se torna universal; mas suas características são principalmente proféticas porque deve anunciar a palavra de Deus, e por isso sofre ridicularização e perseguição, isto é, paga pelo anúncio da Palavra de Deus com uma série de sofrimentos que o servo recebe em uma perspectiva positiva, como instrumento de intercessão pelos pecadores.

O servo é aquele que intercede, isto é, procura obter a salvação de todo o povo através da sua oração, da sua pessoa e, em particular, do seu sofrimento.

Pode-se reler a paixão de Jesus e perceber uma série de referências implícitas aos cantos do servo, em particular ao quarto canto onde se descreve o sofrimento do servo de Javhé. É por isso que Lucas interpreta a missão do Senhor à luz desses cânticos.

 

A cura de Malco indica qual é a batalha

É provável que também Jesus, como verdadeiro homem, descobre a sua missão, conhece que o seu combate não é o de uma guerra tradicional, mas uma batalha que faz com que a própria vida seja um sinal de contradição, que embora não queira discórdias, as provoca necessariamente em virtude da escolha que exige (“não vim trazer a paz, mas a espada”).

O gesto da cura de Malco pode ser um sinal para os apóstolos que indica a verdadeira batalha a ser combatida: não aquela tradicional, contra exércitos ou outros poderes terremos, mas aquela contra o mal, o “poder das trevas”.

O fato que alguns discípulos carregassem armas pode demonstrar uma tendência existente em Israel no tempo de Jesus, que encontrava alguns seguidores também entre os primeiros discípulos: a esperança em um Messias que realizasse a batalha final contra os inimigos, que se personificavam nos romanos que ocupavam a Palestina. A batalha é uma outra, diz Jesus, curando a orelha de Malco.

 

Malco

Se formos reler os relatos da captura de Jesus (Mt 26; Mc 14; Lc 22; Jo 18), podemos ver que cada evangelista cita pelo menos um detalhe omitido dos outros três:

  • Mateus é o único a relatar o que Jesus disse a Judas: "amigo, é por isso que estás aqui!”
  • Marcos fala de um rapaz que acompanhava Jesus "coberto apenas com um lençol" e que quando agarram esse lençol, "deixou-o cair e fugiu nu": uma confissão que sugere que era o próprio Marcos.
  • Lucas, médico, é o único que se lembra que foi Jesus quem tocou e curou a orelha separada do servo do sumo sacerdote (a direita, Lucas e João especificam).
  • O quarto evangelista cita o pedido de Jesus aos soldados - "Se me procurais, deixai-os partir" - do qual se pode deduzir que não foram os onze que escaparam, mas Jesus que intercedeu pela segurança deles.

João também se destaca por outras coisas: entre as quatro, ele é o único a revelar quem teve sua orelha cortada (Malco) e especialmente por quem (Pedro). Enquanto Mateus, Marcos e Lucas dizem pecado e não o pecador.

Por que esses detalhes aparecem em alguns evangelhos e não em outros? A verdade é que não sabemos a resposta. Podemos fazer muitas especulações, mas nunca serão completas. Poderíamos dizer, por exmeplo, que sendo João uma testemunha ocular, transmitiu detalhes que os outros não sabiam. Mas por que não falou do “beijo de Judas”?

Naquele jardim, naquela escuridão e naquele caos, todos viram o que podiam ver e provavelmente relataram como melhor podiam e sabiam. Sem dizer tudo, é claro, porque um evento não é totalmente retornável por palavras ou imagens, e em cada representação - quer esteja a contar histórias, a pintar, a fotografar ou a filmar - algo fica de fora. Mesmo que você não queira, mesmo que você busque a maior objetividade, mesmo com as melhores intenções de não deixar nada de fora, dizer tudo é humanamente impossível.