Pergunta interessante, que nos ajuda a entender muito sobre a revelação de Deus.

Na passagem que você cita, Lucas 20,27-38, o evangelista conta uma armadilha preparada pelos saduceus para pegar Jesus. Eles conviviam com uma questão, que era a existência ou não da ressurreição depois da morte. De um lado haviam os fariseus, que a defendiam, e do outro os saduceus que não acreditavam nela. Os saduceus queriam saber o que Jesus pensava e sugerem a ele o famoso caso hipotético da mulher que teve sete esposos, todos irmãos entre eles. Assim, os saduceus perguntaram a Jesus:

Se existe a ressurreição, no céu qual será o esposo dessa mulher que na terra teve 7 maridos?

a resposta de Jesus foi a seguinte (34-38):

 «Nesta vida, os homens e as mulheres se casam, mas os que Deus julgar dignos da ressurreição dos mortos e de participar da vida futura, não se casarão mais, porque não podem mais morrer, pois serão como os anjos. E serão filhos de Deus, porque ressuscitaram. E que os mortos ressuscitam, já Moisés indica na passagem da sarça, quando chama o Senhor de ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’. Deus não é Deus de mortos, mas de vivos, pois todos vivem para ele.»

Dessa resposta de Jesus resulta evidente que existe a ressurreição dos mortos e essa deve ser a nossa fé.

Para deixar o campo livre de qualquer interpretação equivocada, precisamos sublinhar também que Jesus, quando diz que aqueles que "Deus julgar dignos da ressurreição dos mortos... não se casarão", está falando da vida depois da morte e não está exprimindo um valor sobre o casamento aqui na terra.

Também é importante lembrar que os saduceus, nesse encontro com Jesus, estão mencionando um caso hipotético em base a uma lei tradicional do judaísmo, que é a Lei do Levirato (levir = cunhado em latim), conforme encontramos em Deuteronômio 25: se uma esposa perde o seu marido, seu cunhado a deve tomar como esposa e ter com ela descendência, "para que o nome do primeiro maristo não se apague em Israel".

Para entender esse texto de Lucas, precisamos alargar a nossa visão.

 

O contexto: saduceus e fariseus

Existe muito preconceito contra os intelocutores de Jesus, que são, como ele, judeus. É normal julgar mal aqueles que fazem perguntas a Cristo e taxá-los como "incompetentes". Esse é, de verdade um erro muito grande, que fez muito mal à relação interreligiosa, entre cristãos e judeus. Na verdade é uma dinâmica típica daquele tempo, onde a discussão sobre religião era um argumento da vida quotidiana.

No episódio que estamos vendo, temos os saduceus que fazem a pergunta a Jesus e, depois da sua resposta, no versículo 39, alguns escribas afirmam: "Mestre, falaste bem". A maioria dos escribas eram fariseus. Fariseus e Saduceus são dois grupos de judeus que viviam no tempo de Cristo. O primeiro acreditava na ressurreição e o segundo grupo não. Os principais nesse texto são os saduceus.

Não sabemos muito sobre os saduceus, pois as fontes que temos (Flávio Josefo, escritos rabínicos) são tendencialmente anti-saduceus e podem ter passado uma imagem deturpada desse grupo. De qualquer forma sabemos que provavelmente eles nasceram no período dos Macabeus, quando os judeus fizeram de tudo para resistir à helenização proposta pelos gregos, que queria acabar com os costumes da religião da Palestina, impondo os costumes da grécia. Depois daquele período, do ponto de vista social, tornaram-se a aristocracia da sociedade, pertencendo principalmente à classe sacerdotal, no ponto mais alto da sociedade. Essa posição fez com que se afastassem da gente normal. Além disso, tinham uma concepção religiosa integralista, conservadora, que ajudavam a distanciá-los da massa. Eles se apegavam à Tora, à Lei presente no Pentateuco e excluíam a priori toda interpretação oral do que lá estava escrito. Por outro lado, os fariseus analisavam caso por caso e procuravam aplicar a Lei à vida do povo, tornando-a "vivível". Além disso, do ponto de vista político, os saduceus eram muito oportunistas, fazendo sempre amizade com quem governava. Tudo isso teve como resultado a aproximação do povo com os fariseus e a distância com os saduceus.

Em relação à doutrina religiosa, os saduceus rejeitavam qualquer desenvolvimento dogmátido da doutrina judaica e, por isso, não acreditavam na ressurreição dos mortos, assim como também não acreditavam nos anjos e nos espíritos (veja Marcos 12,18-27, Atos dos Apóstolos 4,1 seguintes). Para eles, a presença da pessoa era determinada da sua descendência. É provavelmente por isso que citam a lei do levirato, de Deuteronômio 25, como vimos acima.

A causa da sua falta de fé na ressurreição dos mortos é porque nos escritos mais antigos do Antigo Testamento ela não está presente. Não estando presente no Pentateuco e não aceitando interpretações posteriores, não acreditavam nela. Ao invés, sabemos que essa fé cresceu no judaísmo, aos poucos.

O caso mais significativo da fé na ressurreição dos mortos por parte dos judeus, além de outras passagens bíblicas, se encontra em 2Macabeus 7, um livro bíblico ausente nas bíblias protestantes. Essa página bíblica conta um episócio que aconteceu durante aquele período mencionado acima, da tentativa de helenização dos judeus. Uma família inteira, mãe e sete irmãos, resistiu a isso e foram todos martirizados, pois rejeitaram comer carne de porco. Durante a narração desse martírio, todos os que estão para morrer expressam a fé na vida eterna, como, por exemplo, diz o segundo dos irmãos a seus augozes, pouco antes de ser assassinado:

Tu nos tiras desta vida presente. Mas o Rei do mundo nos fará ressuscitar para uma vida eterna, a nós que morremos por suas leis (2Macabeus 7,9)

 

A argumentação de Jesus em favor da ressurreição

Sabemos portanto que Jesus está conversando com os saduceus sobre um tema em que eles, ao contrário de Jesus, não acreditam. Na prática, os saduceus, que creem naquilo que está escrito no Pentateuco, não encontrando nada ali sobre a ressurreição, a descartam. Jesus portanto busca, no Pentateuco, uma prova da existência da ressurreição. É por isso que encontramos, em Lucas 20,37-38 essas palavras de Jesus:

E que os mortos ressuscitam, já Moisés indica na passagem da sarça, quando chama o Senhor de ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’. Deus não é Deus de mortos, mas de vivos, pois todos vivem para ele.

Jesus coloca um alicerce comum diante da sua plateia: todos acreditam em um Deus que é Deus de vivos. Se é assim, quando a Moisés encontra Deus na sarça ardente (Êxodo 3 - Pentateuco), por que teria dito que é Deus de pessoas mortas? De fato os patriarcas (Abraão, Isaac e Jacó) eram pessoas já mortas nessa ocasião. Se Deus é deus dos vivos, esses três não podiam estar mortos, mas estavam vivos, estavam vivendo na esperança da vida eterna, aguardando o "último dia", aquele da ressurreição.

Portanto, para Jesus, a ressurreição dos mortos é anunciada já nos primeiros livros da Bíblia, no Pentateuco.