A sua pergunta tem a ver com o relato contato por Mateus 8,28-34, e presente também em Marcos 5 e Lucas 8, da expulsão do demônio de um ou mais endemoninhados, que se refugia numa manada de porcos, que afogam no lago.
A primeira coisa a considerar é a sua afirmação sobre a natureza dessa narração. Você insinua que alguns dizem que é um "conto", um "suposto" evento, ou seja, que não é algo verdadeiramente acontecido. Precisamos, em outras palavras, concordar com essa teoria? Claro que não. É provável que os evangelistas estão falando de um fato efetivamente acontecido, tanto é que se faz presente nos 3 evanglhos sinóticos. Há vários outros episódios contados unicamente por um evangelista; esse, ao contrário, é contato por três deles.
É provável que a dúvida nasce a partir da análise das três narrações, colocando-as em paralelo. As informações que cada evangelista passa são diferentes e, às vezes, discordam entre elas. Por exemplo, Mateus diz que o milagre aconteceu na região dos GADARENOS, que fica no interior, na atual jordânia, enquanto que Marcos e Lucas falam que o protagonista era um geraseno, habitante das margens do Lago da Galileia, numa cidadezinha hoje identificada com o nome de Cursi. Apesar dessa discrepância, todos os três evangelhos concordam - e essa é a informação mais importante - que o milagre aconteceu "DA OUTRA PARTE DO LAGO", isto é, fora de Israel, em território pagão. Outra incongruência entre os três evangelistas é que Mateus fala de dois endemoninhados, enquanto que Marcos e Lucas falam de um “homem da cidade possesso de demônios”.
A lógica histórica dos evangelhos
Existe um debate histórico entre os exegetas para estabelecer o confim entre história e teologia nos Evangelhos e, em geral, nos textos bíblicos. Às vezes somos tentados a ler os escritos bíblicos como se fossem crônicas, como aquelas que lemos nos jornais de hoje, onde o principal objetivo é passar informações para os leitores. Os escritos bíblicos, ao invés, ultrapassam esta meta e não querem simplesmente passar uma informação: junto com a informação, passam uma teologia e uma experiência de fé. Há muitos falos sobre Jesus que os evangelhos não contam, pois eles não querem ser uma mera biografia da vida de Cristo, mas um texto que transmite a sua mensagem. Isso faz com que o autor, o evangelista, tenha uma certa liberdade diante de um fato histórico: ele pode acrescentar algum detalhe, usar algum elemento de outro evento, inserir uma interpretação já presente na comunidade, sublinhar algo que se identifique com a comunidade para a qual está escrevendo. Ou seja: há um evento base, uma fonte comum que é enriquecida pelo autor, que com o evento pretente trasmitir uma mensagem ao seu público.
Os evanelistas escrevem os seus textos ao menos 40 anos depois da morte de Cristo. João o escreve ainda mais tarde, talvez 60 anos depois da morte de Jesus. Eles não se sentam em uma escrivaninha, alguns dias depois da páscoa, e colocam tudo por escrito, tim-tim por tim-tim. O texto nasce após uma longa reflexão e uma caminhada já concreta da comunidade cristã. Isso não significa que as coisas são inventadas, mas sim elaboradas e refletidas. Essa é a razão essencial das diferenças existentes entre os evangelistas. Todavia, à base está sempre o evento histórico da encarnação de Cristo, que não pode ser nunca excluído e ignorado.