Lemos em Gênesis 2,1:

Assim foram concluídos o céu e a terra, com todo o seu exército.

Esse é um dos últimos versículos do primeiro relato da criação, aquele em que tudo é criado em 6 dias e no sétimo Deus descansa. Em Gênesis 2,4b começa o segundo relato, aquele que a mulher é criada do "costado" do homem...

Imagino a sua perplexidade em relação a este texto, que é um sentimento vivido por tantos outros leitores da Bíblia, quando se confronto com esses textos que contam a criação do mundo: como pode aparecer aqui um "exército" se o mundo foi criado há pouco? De que exército se fala, se o homem acabou de ser criado e não tinha nem ainda sido "expulso" do paraíso?

Todas essas perguntas têm sentido, mas é fácil de compreendê-las e é mister denunciar uma visão errada que faz com que elas sejam postas. A Bíblia, nos seus 11 primeiros capítulos, não conta a história como entendemos nós, isto é, não está fazendo um elenco cronológico dos eventos. Em palavras bastante cruas e duras, a criação não aconteceu exatamente como dito na Bíblia, em termos de eventos. Mas ela revela uma verdade que não pode ser descartada, cuja essência é aquilo que quer transmitir o autor desses primeiros capítulos bíblicos: tudo foi criado por Deus. Ou seja, a Bíblia não diz "como", mas "o que" aconteceu: o mundo foi criado por Deus. O autor bíblico não sabe "como" aconteceu. Não sabemos nem mesmo nós hoje, que temos tantos recursos científicos.

A prova de que a Bíblia não conta a criação de uma perspectiva história é o fato que nos capítulos 1 e 2 de gênesis temos duas criações. Como disse acima, em 2,4a termina a primeira criação e em 2,4b começa a segunda. Como pode haver duas criações? Não existiram duas, mas dois modos de entendê-las. Aquela que conta a criação feita em 7 dias vem da visão sacerdotal, dividindo tudo como um 'rito', que acontece em uma semana, como se fosse um tempo litúrgico. A segunda é muito mais antiga e se caracteriza pelo uso do nome divino "YHWH". Elas não se excluem, mas se completam.

Para evitar todo equívoco, sublinho que aquilo que está em Gênesis 1 - 11 é tudo verdadeiro, mas não é histórico. A sua mensagem é fundamental para a nossa vida, mas as informações ali contidas é um conjunto de concepções mitológicas que não se referem à realidade, mas são instrumentos que permitem ao autor bíblico tranmitir a verdade sobre a nossa razão de ser e a nossa relação com Deus.

 

Exército terreno e celeste

Quando o autor bíblico conta a sua versão da criação, coloca dentro toda a bagagem cultural que tem consigo. A criação engloba tudo aquilo que ele conhecia e elementos próprios do seu mundo aparecem ali inseridos. Um desses elementos é o "exército".

Na vida quotidiana dos hebreus, o exército é um fator predominante. As constantes guerras e a luta pela sobrevivência como povo dependia muito da força militar. Israel nunca foi militarmente uma potência, mas o seu sonho era esse. Esse sonho culmina com a certeza que Israel é comandado por Deus, que é YHWH Shabaot, o Senhor dos Exércitos. Deus é soberano não só na terra, mas também no céu e comanda por isso também o exército celeste. De fato, acreditava-se que o Senhor comanda um exército de anjos (Josué 5,13-15; 1Reis 22,19; 2Reis 6,17). No Novo Testamento prevalece Deus como o comandante do exército celeste. Por exemplo, na luta final entre o bem e o mal, como contado em Apocalipse 19, Cristo é o comandante do Exército celeste, que derrota o exército da besta e aquele dos reis da terra. É sob essa perspectiva que podemos ler também expressões presentes ainda hoje entre os cristãos, tais como “Exército da Salvação”.