O nosso leitor não consegue entender uma pequena explicação que demos aqui no site sobre os primeiros capítulos da Bíblia. Veja aqui o texto de 2014, para entender a colocação que transcrevo liberalmente aqui abaixo:

Estava procurando por informações sobre Adão e acabei chegando ao texto:
Não é correto perguntar "quantos anos tinha Adão..." Adão e Eva não são personagens históricos, mas criação literária, mitológica que transmite um ensinamento religioso que está à base da fé judaica e cristã: tudo o que existe, com o ser humano ao centro, foi criado por Deus, que fez boas todas as coisas.
A explicação acima contradiz tudo o que há de mais lógico no texto da Torá. Se o primeiro homem e a primeira mulher são "criação literária", o que somos todos nós então? É absolutamente vital que os dois sejam personagens reais sim, caso contrário, nada faz sentido. Vosso "ensinamento", a meu modesto ver, não tem qualquer embasamento que possa dar-lhe sustentação.

É lógico que não vamos retratar quanto dito naquela ocasião, mas a sua colocação é uma ulterior oportunidade para aprofundar esse tema. Se pode ajudar, friso que em ambientes acadêmicos de um certo teor, todos estão de acordos em ler da mesma maneira os primeiros 11 capítulos da Bíblia, como um texto que toma conteúdos mitológicos para dar uma resposta, à luz da fé do povo judeu, às perguntas fundamentais da nossa existência. Existe uma grande lacuna entre o mundo acadêmico e a opinião geral tradicional cristã, que continua fazendo uma leitura fundamentalista do texto bíblico. Com certeza a culpa – se quiséssemos encontrar alguma – não deve ser atribuída aos “leigos”, mas sim aos acadêmicos, que não conseguem passar o resultado de suas reflexões. O nosso site procura ser uma ponte entre esses dois mundos.

 

A Bíblia não erra

A dificuldade em passar para o grande público as conclusões acadêmicas reside na concepção correta de que a Bíblia é Palavra de Deus. E, sendo assim, não pode errar. Afinal de contas, Deus pode dizer uma mentira? Portanto é inconcebível pensar que algo escrito nesse livro esteja errado. E assim, de fato, é: a Bíblia não erra. O problema é explicar como ela não erra, coisa que resulta de verdade difícil mesmo para mim.

Se por um lado deixamos como um alicerce a inenerrância bíblica, por outro é fácil encontrar incongruências, repetições, contradições e outros detalhes dentro da Bíblia. Basta dar dois exemplos banais. Gênesis 7,2 diz que na Arca de Noé entraram “sete pares” dos animais, enquanto que em 7,15 diz que entraram “um casal” de tudo o que é carne. Fica a dúvida: 7 ou 1 casal de cada animal? Os Evangelhos contam que Jesus curou um endemoninhado geraseno. Mas era um (como aparece em Marcos e Lucas) ou 2 (Mateus 8,28)?

Parece para mim muito evidente que o conceito de “erro” precisa ser melhor considerado, quando falamos que a Bíblia não erra.

Primeiro de tudo, poderíamos começar fazendo um exercício em direção ao positivo, dizendo que a Bíblia diz a verdade, sem falar de “erro”. Mas isso seria simplesmente uma “conversão” psicológica e não resolve a questão, embora possa ser o ponto de partida.

Sem querer me tornar prolixo e perder a sua atenção, proponho dois exercícios, que logicamente precisam ser aprofundados. O primeiro é mais empírico e o segundo tem uma índole teológica.

 

a) O exercício da metáfora

A metáfora é uma figura de linguagem usada para dizer uma característica, passar uma mensagem usando um objeto que serve só para a comparação. Um exemplo é: Pedro tem uma vontade de ferro. O principal nessa frase é a definição da vontade do Pedro, que é dura, forte, persistente. O ferro serve apenas como um instrumento, mas não é essencial; pode ser deixado de lado. Mas sendo um símbolo universalmente conhecido como algo forte, é muito eloquente. Se alguém, há 4 mil anos atrás, quando ainda não se conhecia esse metal, usasse essa frase, não teria nenhum sentido, mas a frase continuava tendo a sua validade, pois a “vontade” de Pedro era igualmente forte.

Espero que você consiga perceber a sútil proposta em relação ao texto bíblico: A Bíblia usa um vestido, que é a linguagem do autor, que não é divino, mas por trás desse vestido, com todo o seu limite, está a verdade divina. E isso nos dá o tom para passar ao segundo exercício.

 

b) A Bíblia não é ditada

Deus não desceu do céu e entregou a Bíblia pronta. Deus assumiu a linguagem humana como meio para transmitir a sua vontade, assumindo todos os limites que são próprios dessa lógica, que podem ser o estilo literário, o conhecimento do autor, o ambiente em que o texto foi escrito. O contrário disso é pensar que a Bíblia foi ditada por Deus. Muitos pensam isso da Bíblia. Pensar assim é a mesma coisa que acreditar que Jesus Cristo não foi homem, mas somente Deus. Deus não se “finge” de homem, mas assume a condição humana plenamente, como lembra Paulo. A Bíblia também não é “monofisista”, mas é divina e humana, com todas as faces típicas da humanidade.

 

As duas histórias da criação

Para terminar, retomo a razão desse comentário, que é a sua perplexidade pelo fato que a história da criação na bíblia seja uma “criação literária”. Sinto muito em confirmar isso, mas assim o é. Isso é evidente empiricamente, pois basta ler em seguida os capítulos 1 e 2 de Gênesis.

Em 1,27 temos:

“Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou”.

Em 2,5 lemos:

Não havia ainda nenhum arbusto dos campos sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha ainda crescido, porque Iahweh Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo.

Como assim ainda “não havia homem”? Não fora criado em Gênesis 1,27?

A verdade é que estamos diante de duas histórias da criação, escritas em tempos diferentes, por autores diferentes e com características específicas: até Gênesis 2,4a temos uma história da criação e a partir da segunda metade do versículo 4 começa outra história. Na primeira tudo é criado em 7 dias, incluindo o repouso divino e na segunda Deus cria o ser humano da argila do solo, colocando-o no Éden com a “mulher”, criada da sua costela.

Essa simples constatação mostra claramente que a intenção da Bíblia não é aquela de transmitir uma cronologia da criação, dizendo em que ano isso aconteceu, mas dar uma resposta fundamental sobre a nossa origem: viemos de Deus. O “vestido” que serve para contar essa verdade pode muito bem ser relativizado e visto e estudado como uma construção literária. O primeiro homem e mulher não são criação literária, mas obra de Deus. A criação literária é o texto de Gênesis que mostra essa verdade.