Muitos pedem uma reflexão sobre os “gigantes” na Bíblia. São figuras que impressionam sobretudo porque desconhecidas e revestidas de um mistério por falta de clareza da sua função e do que realmente são.

 

A influência da tradução

A primeira coisa que se faz necessário dizer é que em hebraico, língua do Antigo Testamento, não aparece esse termo. “Gigante” surge apenas com a tradução grega, que emprega o termo “gigas”. Portanto, a nossa concepção pode ser muito influenciada pela tradução e não se fundamenta no texto original.

O vocábulo grego “gigas” foi usado para traduzir a palavra hebraica “gibbor”, que indica pessoas com capacidades físicas extraordinárias (Gênesis 6,4; Salmos 33,16; Isaías 3,2).

 

Quem são?

Quanto tratamos desse tema, vem logo em mente os “nefilim” apresentados em Gênesis 6,4, no contexto da causa última do dilúvio. Porém o conceito, no início dessa tradição, é muito mais alargado.

Com esse mesmo termo são definidos os descendentes da estirpe de Rafah, que vivem entre os filisteus (2Samuel 21,16-22; 1Crônica 20,6.8). Eles se identificam com os Refaim, considerados um povo, do qual descende por exemplo Og, rei de Basã (Deuteronômio 3,11). Os Refaim eram formados por outros grupos, dentro dos quais estavam os filhos de Anaq, os enacim, que também são definidos como “gibbor” (Deuteronômio 1,28).

O texto de Gênesis 6,4, onde aparecem os “gigantes” é aquele que chama mais a atenção dos “apaixonados” por esse tema. Os gigantes aparecem como resultado da vinda dos “filhos de Deus”, que se unem com as filhas dos homens e têm filhos com elas. Transcrevo Gênesis 6,4:

Ora, naquele tempo e também depois, quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos, os nefilim (gigantes) habitavam sobre a terra: estes homens famosos foram os heróis dos tempos antigos.

Temos portanto os “filhos de Deus” e os “gigantes”. A raiz da palavra “nefilim” evoca o verbo “cair” (nafal) e daí deriva a conexão com os “anjos caídos”, os “filhos de deus”, que caracterizará a leitura dessa passagem.

 

Os “anjos caídos” e a origem do mal

Para entender os “filhos de Deus” que se unem às mulheres e com elas têm filhos, os gigantes, é fundamental considerar que essa encenação tem a ver a existência do mal. O mal é algo que desafia a fé em Deus e provoca muita reflexão em ambiente religioso. Por exemplo, muita teologia paulina é concentrada no papel que Jesus Cristo tem em livrar o ser humano dessa realidade que o aflige. Mas não quero alargar muito a nossa prospectiva, para não distrair a nossa linha de pensamento.

Tentando entender a realidade do mal, a sabedoria religiosa criou narrações e, com elas, personagens que têm o escopo de esclarecer esse tema. No tempo de Jesus, essa discussão era muito viva e hoje não nos damos conta disso. Um estudo profundo da realidade dos grupos religiosos judeus daquele período revela quão complexa era a contenda sobre isso. Para analisar o tema, é fundamental considerar a literatura judaica, especialmente aquela dita enóquica, que tenta dar uma resposta à questão. Essa corrente literária representa a apocalíptica, que será a mesma corrente religiosa predominante nos primeiros cristãos.

Dentro dessa literatura podemos incluir também o “livro dos gigantes”, apócrifo encontrado em Qumrãn, que relê o texto que encontramos em Gênesis 4, e descreve os filhos “anjos vigilantes”, que aparecem em Enoc 1 – 36. Esses personagens decidiram renunciar à própria condição angélica, em contraste com Deus, e guiados por Semyaza, seu chefe, desceram do céu para se unirem com as mulheres da terra e com elas terem filhos. Ensinaram também aos homens a usar os metais e outras profissões.

 

O mal no judaísmo

Parte-se do princípio de que Deus criou tudo “bom” e perfeito. Então, como é que existe o mal? É preciso dar uma resposta, coisa que os movimentos judeus fizeram de maneira variada. Cada resposta comportava uma teologia consequente.

Vou resumir brevemente as respostas, de acordo com as correntes do judaísmo.

Os saduceus não concebiam o mal como uma realidade que fazia parte da vida humana. O mal era simplesmente fruto de uma transgressão de alguns, enquanto eles mesmos eram aqueles escolhidos para guardar o universo bom criado por Deus. Os transgressores eram punidos já aqui durante a própria vida. Por causa da convicção da suma bondade da criação, não podiam aceitar a ideia de uma nova criação e nem do juízo universal, que implicaria em aceitar a coexistência do mal e sobretudo uma eventual imperfeição da criação.

Os judeus helenistas vão na mesma linha dos saduceus. Para eles o mal existia somente em nível individual, mas não em nível cósmico, pois Deus é capaz de reconduzir tudo ao bem, também aquilo que a nós parece mal. Sublinham, de fato, a senhoria de Deus e cada coisa é feita segundo o seu plano.

Os fariseus têm consciência de que Deus criou algo muito bom, mas depois alguma coisa deu errado. Acreditavam que a responsabilidade do “errado” era dos homens e das mulheres que não permaneceram fiéis à vontade de Deus, fazendo um uso equivocado do livre arbítrio. As transgressões se multiplicam a tal ponto de deturpar o “bom” que Deus havia feito. Para remediar, Deus precisava punir os culpados com um juízo universal e restaurar o “bom”, dando-o àqueles que se demonstram fiéis à sua vontade.

Os judeus apocalípticos viam o mal não como consequência da transgressão humana, mas a consequência de uma rebelião cósmica. A primeira parte do Livro de Enoque fala exatamente da “queda” dos anjos rebeldes. Após a rebelião, os anjos atravessam a barreira que existia entre céu e terra, unem-se às mulheres e geram “gigantes”, que começam a difundir o mal na terra e assim estragam a inteira criação. Deus então reage com seus anjos fiéis (Miguel, Gabriel, Rafael e Uriel), que travam uma batalha com os anjos rebeldes, conquistando a vitória. Os anjos rebeldes, como punição, são lançados na terra, abrindo-se uma cratera e ali, em um lugar escondido, são tidos como prisioneiros, longe dos homens, até o final dos tempos. Mas os gigantes, filhos desses anjos, continuavam sobre a terra realizando obras más e se faz necessário o dilúvio, para destruí-los. Eles são meio humanos e meio divinos; enquanto seus corpos são destruídos pelo dilúvio, suas almas, imortais porque divinos, permanecem vivas e são os “espíritos impuros” que ainda estão entre os homens e procuram provocar todo tipo de mal, desde doenças até rebeliões contra Deus.

Os cristãos surgiram nesse contexto. Ou melhor, são desse contexto. De fato eles não representavam uma nova religião, mas um movimento dentro do judaísmo. Tanto que em relação a Paulo, por exemplo, não é correto falar em “conversão”, pois não mudou de religião (perdão pela digressão). Em linhas gerais, os primeiros cristãos se identificavam com os “apocalípticos”, assumindo as suas convicções também em relação à visão sobre o mal, coisa que resulta evidente. Nos evangelhos, por exemplo, nos deparamos frequentemente com os “espíritos impuros”; é relevante a batalha entre Miguel e Satanás; a ideia do inferno, que se concretiza graças à queda dos anjos rebeldes (cratera embaixo da terra)...

 

Diabo e pecado

Sucessivamente se desenvolve ulteriormente a concepção apocalíptica do mal no mundo. Isso se dá especialmente através de dois movimentos.

O primeiro deles identifica a figura de Satanás como o líder dos anjos rebeldes. Nós o conhecemos como Diabo em nossa tradição cristã.

Outro movimento, ainda mais importante, é a fusão dessa concepção com o pecado de Adão e Eva no Paraíso. Como lemos, Adão e Eva são “tentados” pela serpente, que no texto de Gênesis não tem nada a ver com um “anjo caído” ou com um demônio. Porém, a tradição apocalíptica começa a identificá-la com uma figura demoníaca, um tipo de satanás que se apresenta aos dois e se torna o responsável pela sua caída. O resultado é que o ser humano não é somente responsável, mas também vítima, passando a ser dominado pelo mal: do mal é vítima e do mal precisa ser libertado para realizar obras boas. A queda no Paraíso deixou as coisas muito mais complicadas para o ser humano, que agora sofre a influência do maligno.

Essa leitura do mal é fundamental para conceber o remédio a esta situação, remédio que para nós cristãos será Jesus Cristo.