Gênesis 3 é o capítulo que fala do paraíso colocando junto três personagens: homem, mulher e a serpente. Homem e mulher podem viver tranquilamente no “jardim”, com a única condição de não comer do fruto da árvore que está no meio do jardim, sob pena de morte. Aparece então a serpente que convence os dois, garantindo: “não, não morrereis (...) Vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal”. Eles então comem do fruto daquela árvore e “então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus”.
É bastante normal identificar a serpente com o diabo, com o tentador. Mas se nos limitamos ao texto de Gênesis, essa relação não existe: gênesis não fala de nenhum demônio que tenta Adão e Eva. Só na época de Cristo, já dentro da tradição sapiencial, no Judaísmo, começou a identificação da serpente com um ser hostil a Deus e inimigo do homem, reconhecendo nela o Adversário, o Diabo.
Praticamente em todo o Antigo Testamento não existe uma relação entre o pecado de Adão e Eva com o diabo. A serpente, na Bíblia é vista simplesmente como um animal, sem o juízo atribuída a ela por nós, mas simplesmente uma criatura divina com o dom da astúcia. Jesus inclusive convida a ser prudente como as serpentes (Mateus 10,16).
Por que a serpente e não outro animal?
O autor da Bíblia, sem o rigor historiográfico, conta o processo que o ser humano vive de rebelião aos preceitos de Deus, de falta de compreensão do “limite” imposto por Deus, única via para a vida feliz. Também nas fábulas de hoje, histórias que revelam a verdade da vida humana, os animais estão presentes e fazem parte da trama (veja a cigarra e as formigas). Devemos apenas entender por que a serpente, deixando de lado a identificação a posteriori com o diabo. Para isso é muito importante o contexto histórico do autor desse texto e do seu público, aspecto frequentemente ignorado por quem lê a Bíblia.
Os hebreus viviam em íntima relação com os cananeus, povo que morava na região da Palestina, quando chegaram na Terra Prometida. A Bíblia conta a epopeia da conquista da Terra Prometida e sublinha a inimizade entre os dois povos. Mas é provável pensar em interações e contatos que não aparecem deliberadamente na Bíblia. Com toda probabilidade certos costumes dos cananeus eram bem conhecidos pelos hebreus e não podemos excluir contatos e convivências. Isso fica muito claro quando a Bíblia fala da tentação à idolatria, escondendo nessa inclinação o perigo de querer seguir práticas existentes nos povos com quem os hebreus se relacionavam. E é bem provável que a história da serpente possa ser melhor entendida exatamente a partir das práticas comuns entre os cananeus.
No culto cananeu, a serpente era símbolo de fertilidade, símbolo frequente, e a mulher era um tipo de sacerdote que proporcionava essa virtude. Eram comuns entre os cananeus os “santuários” aonde vinha praticada a prostituição sagrada. Era praticada como tentativa mágico para vencer a morte e possuir a vida. Nesses locais cananeus, destacavam-se a figura da mulher e o símbolo da serpente, exatamente os dois personagens colocados como protagonistas na “queda” de Adão.
Essa é a razão pela qual encontramos a serpente na história do paraíso: ela lembra a tentação que existe na falta da fé no Senhor, o Deus dos hebreus, a vontade de “transgredir” o limite imposto pela Lei, que é a estrada que conduz à vida em Deus. Ao invés do compromisso moral, os hebreus eram tentados a viver uma religião que propunha um rito mágico que garantisse a vida. O santuário cananeu, com seus dois elementos fundamentais, encarna de maneira excelente essa tentação.
Tentação de Deus?
Deus não tenta ninguém. Seria contra a sua natureza. O mal é uma realidade que existe, fruta da escolha humana que pode ser vista como culpa pessoal ou como uma situação antropológica. No fundo, também a história do Paraíso é uma tentativa de explicar a existência do mal, excluindo qualquer culpa divina.
Deus não nos conduz à tentação, mas, ao contrário, a fé nEle pode nos libertar dela. É por isso que pedimos que "não nos deixe cair em tentação", pedindo a sua intercessão pela nossa fraqueza.