O sacrifício é um tema bíblico bastante complicado para entendermos. Sendo um aspecto complexo, é normal fugirmos dele. Todavia essa atitude não é correta, visto que se trata de um aspecto central, pois era uma prática comum da religião dos judeus, a qual pertencia Jesus. Mas sobretudo, a sua compreensão é fundamental para entender plenamente o mistério de Cristo, o “sacrifício perfeito” (veja Hebreus 4,14).
No fundo, podemos detectar uma polêmica contra os sacrifícios. De fato, aqui mesmo no nosso site não é raro termos perguntas que questionam como pode a nossa religião ter à base de sua história a prática de matar animais para oferece-los a Deus. Procuramos então evitar aprofundar esse tema recordando os violentos ataques dos profetas, no Antigo Testamento, contra os sacrifícios (veja Isaías 1,11-17; Jeremias 6,20; 7,21-22; Oseias 6,6; Amós 5,12-27; Miqueias 6,6-8). Dizemos, cheios de convicção, que seguindo essas mensagens proféticas, que aquilo que conta é a obediência a YHWH, a prática do direito e da justiça (Isaías 1,16-17; Jeremias 7,23; Amós 5,24; Miqueias 6,8).
Diante dessa situação e com a ajuda da famosa obra de De Vaux (As Instituições do Antigo Testamento), proponho aqui uma reflexão sobre o sentido do sacrifício e também umas linhas sobre a polêmica que o envolve.
O que é o sacrifício na Bíblia?
O sacrifício é uma ação essencial do culto, é uma ação simbólica ligada à oração, que faz com que se tornem eficazes os sentimentos daquele que oferece e a resposta de Deus. Na prática, graças ao sacrifício, o dom a Deus é aceitado, a união com Deus se torna uma realidade e a culpa do fiel é cancelada.
Ao mesmo tempo, o sacrifício não é um ato mágico, pois exige, por parte de quem oferece, uma atitude genuína e, por parte de Deus, a aceitação da oferta. Se esses dois elementos não existem, não é um verdadeiro sacrifício e não mais um ato religioso.
Se analisamos o âmago da mensagem bíblica, descobriremos três elementos que compõem a natureza do sacrifício na tradição judaica: dom, comunhão e expiação.
Dom
A oração, que o cronista põe na boca de Davi nos indica a estrada para expor essa perspectiva do sacrifício (1Crônica 29,14):
Quem sou eu, e quem é o meu povo para podermos te oferecer tudo isso? Tudo vem de ti, e a ti ofertamos o que de tuas mãos recebemos.
Nós recebemos tudo dEle e, por isso, é justo que a Deus seja dado um tributo, assim como faz o súdito com o seu rei. É como se a oferta que se dá fosse uma maneira de pedir permissão para usar o resto que fica para os próprios fins. Essa lógica é evidente por exemplo na oferta das primícias da colheita e na lei dos primogênitos.
Mas não pensemos que o sacrifício é apenas um tributo que se paga. Aquilo que se oferece faz parte da vida quotidiana, são coisas necessárias para a própria vida. A pessoa tira algo importante de si mesma para dar, perdendo algo. Mas, ao mesmo tempo, ganha, como se fosse uma garantia junto a Deus: Deus, aceitando a oferta, fica ligado ao oferente, mesmo não tendo necessidade de tal dom.
Comunhão
O sentimento de dependência de Deus, exprimido com a oferta não é o único elemento da religião. O ser humano religioso busca a comunhão com Ele. Participar de um mesmo bem com Deus significa estar em comunhão com Ele. Tenho Deus recebido o sacrifício sobre o altar, os oferentes comiam o resto, em uma comida religiosa e assim participavam do sacrifício, simbolizando a união com o Senhor. É assim que entendemos a pergunta de Paulo em 1Coríntios 10,18:
Considerem o povo de Israel: quando comem as vítimas sacrificadas, não estão eles em comunhão com o altar?
A lógica humana da mesa como lugar de comunhão é transferida para a esfera religiosa: a comida do sacrifício reforçava a aliança entre o fiel e Deus.
Expiação
A expiação já está implícita nos dois aspectos mencionados acima: a oferta que estabelece a boa relação entre Deus e o oferente. Porém especificamente o Levítico dá ao holocausto, um dos tipos de sacrifício, um valor expiatório: o sangue serve para fazer sobre o altar o rito de expiação (Levíticos17,11).
A necessidade de expiação se intensifica quando o ser humano peca e precisa regressar para Deus, restabelecendo a aliança violada. Nesse caso o rito com o sangue tem muita importância, sem ser uma comida sacrifical, como acima no caso da comunhão. A importância desse sacrifício aumenta na medida em que o povo toma consciência da sua própria culpa em situações de pecado, de calamidades em Israel, sentido o apelo do Senhor à conversão.
Polêmica contra os sacrifícios e a novidade do cristianismo
A mensagem dos profetas, mencionadas no início desse artigo, levaram alguns a dizer que os profetas condenaram o sacrifício e até mesmo qualquer tipo de culto externo. Mas, por outro lado, nos profetas não existe uma rejeição do templo e então, segundo a teoria desses exegetas, o ideal profético seria praticamente um santuário sem altar e sem sacrifício, quase um “protestantes do Antigo Testamento”.
Mas os profetas não rejeitaram os sacrifícios. Basta ler com mais profundidade e alargar a perspectiva. De fato, mesmo se Isaías diga “quando vocês erguem para mim as mãos, eu desvio o meu olhar; ainda que multipliquem as orações, eu não escutarei” (1,15), nunca ninguém ousa dizer que os profetas tenham rejeitado a oração. Os textos citados acima dos profetas não podem ser usados como argumento para dizer que que eles condenam em si mesmo os sacrifícios. Precisamos entender um pouco da linguagem hebraica para compreender perfeitamente esses textos dos profetas. É usada uma forma linguística dita “negação dialética”, para a qual podemos citar outros textos também do Novo Testamento. É normal encontramos a expressão “não isto, mas aquilo”. Trata-se de uma expressão que significa “não tanto isto quanto aquilo”. Por exemplo, Oseias 6,6, que literalmente diz “eu quero amor e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos”, precisa ser lido “eu quero muito mais amor do que sacrifícios”, pois a primeira frase é uma comparação, assim como a segunda. Veja também 1Samuel 15,22, onde o profeta afirma:
O que é que Javé prefere? Que lhe ofereçam holocaustos e sacrifícios, ou que obedeçam à sua palavra? Obedecer vale mais do que oferecer sacrifícios. Ser dócil é mais importante do que a gordura de carneiros.
Os profetas, como pregadores, se opõem ao formalismo de um culto esterno onde as disposições interiores não correspondem àquilo que aparece. No fundo, o que dizem é: o ato religioso é eficaz somente se aquele que oferece é coerente com sua vida.
Isso aparece também na corrente sapiencial (Provérbios 15,8):
Javé detesta o sacrifício dos injustos, mas aprecia a súplica dos homens retos.
Além disso precisa notar que os oráculos dos profetas aparecem sempre em contexto de condenação: a culpa de Israel é muito grande e não serão os sacrifícios que resolverão a situação (veja Jeremias 6,19-20).
Alguns recordam os judeus que viviam às margens do Mar Morto, os essênios. O historiador Filone diz que eles não ofereciam sacrifícios e Josefo Flávio afirma que ofereciam sacrifícios só em privado. Porém essas afirmações precisam ser bem entendidas e não significam necessariamente que o sacrifício era rejeitado por essa seita dos judeus. Eles haviam rompido com os sacerdotes que controlavam o Templo, com o culto oficial. Eles eram muito ortodoxos e provavelmente não ofereciam sacrifícios porque fora do Templo tais atos de culto seriam ilegítimos. De fato, os documentos encontrados nas grutas de Qumran mostram como eles confirmam o valor do sacrifício, dando um lugar importante nas regras elaboradas para a Comunidade.
Por outro lado, é lógico que a condenação do formalismo do culto por parte dos profetas, a pregação de Jeremias sobre a religião do coração, as exigências de santidade por Ezequiel e o judaísmo com suas correntes que propunham um ideal de piedade, penitência e pureza moral (essênios) contribuíram muito a interiorizar e espiritualizar o culto, considerado cada vez mais como expressão da interioridade humana.
Jesus vive nesse contexto. Ele não condena o sacrifício, mas oferece a si mesmo como sacrifício (Efésios 5,2), vítima pascal (1Coríntios 11,25).
Cristo é um sacrifício perfeito: dom total, dando-se inteiramente a Deus; comunhão íntima, através sua filiação, com o Senhor; expiação definitiva para todos os pecados do mundo. Sendo perfeito, exaurindo todas as exigências dos sacrifícios, é definitivo: o templo pode desaparecer, os sacrifícios de animais precisam terminar, pois expressão imperfeita do sacrifício de Cristo, que “se ofereceu uma vez por todas”, como repete em continuação a Carta aos Hebreus.