Hoje, segundo domingo de agosto e dias dos pais, muitas comunidades escutam nas celebrações esse milagre contado por Mateus 14,22-33 (e também Marcos 6,45-51 e João 6,16-21). Seria interessante ver a diferença entre os três evangelistas, mas não quero lhe distair e simplesmente proponho uma leitura particular do texto litúrgico de Mateus 14.
O contexto
Conhecemos bem esse milagre: os discípulos estão no barco, meio do lago da Galileia, dito “mar”, com muito vento e em dificuldades... Jesus vem caminhando sobre as águas. Os discípulos pensam que é um fantasma, mas quando descobrem que é o Mestre, Pedro vai ao encontro dEle, está para afundar, mas Jesus o segura pela mão, entra no barco e tudo termina bem.
Há muitas mensagens bonitas que facilmente se podem tirar dessa história. E a mais imediata é que com Jesus dentro do próprio barco, não tem tempestade que nos faz afundar. Mas, conhecendo a riqueza do Evangelho, temos que ter os olhos e mentes abertos e tentar entrar mais em profundidade no texto, sem excluir as mensagens imediatas, que também são importantes.
Para descobrir mensagens “escondidas”, o primeiro segredo é prestar atenção na ambientação preparada pelo autor do Evangelho. Como acenado acima, cada um dos três evangelistas que conta a história, traz detalhes diferentes; o âmago da história é sempre o mesmo, mas os detalhes são diferentes. Isso acontece porque cada autor quer passar mensagens diferentes. Vamos ver o que podemos descobrir em Mateus.
O quadro do milagre
Na leitura narratológica da Bíblia, um dos processos importantes é a análise do quadro. Sem ser muito técnico, trata-se de ver qual é a moldura que o autor coloca para a sua história. A proposta desse método de leitura de textos bíblicos é importante porque, como dito, nos ajuda a prestar a atenção a detalhes que normalmente são ignorados. Temos a tendência a observar somente o âmago da narração. No caso desse milagre, concentramos nossa atenção nas palavras de Pedro (“Senhor, salva-me”) e de Jesus (“homem fraco na fé, por que duvidaste”) e na conclusão que é uma profissão de fé (“verdadeiramente, tu és o Filho de Deus”).
Vamos ver, ao invés, como um olhar atento para o quadro do milagre nos possa ajudar a enriquecer a nossa interpretação. Apresentamos, então, a moldura a esse milagre, proposta por Mateus:
- Termina a multiplicação dos pães
- Jesus “força” os discípulos a entrar na barca
- Diz para eles ir para a “outra margem”
- Jesus fica no monte rezando e os discípulos no meio do mar
- No mar, longe das margens, havia ondas e vento contrário
- Acontece o milagre
- Desembarcam em Genesaré.
Cada um desses elementos pode ser o ponto de partida para uma reflexão, à qual cada leitor pode acrescentar a sua. De fato, a Bíblia tem essa riqueza: não existe uma reflexão definitiva e nem exclusiva. A reflexão de um texto, como muito bem ensinaram os grandes rabinos judeus, é enriquecida em cada geração e por cada leitor.
Podemos aqui fazer alguns ensaios, em 4 tópicos.
- O primeiro deles: por que o evangelista colocou o evento depois da multiplicação dos pães? Por que Jesus “força” (em grego anagkazó) os discípulos a entrar no barco? Lembremos que na multiplicação dos pães, Jesus diz aos discípulos: “dai-lhes vós mesmos de comer”? Estaria Jesus convidando os seus discípulos a “se mexerem”, a ir em missão, a serem protagonistas?
- Além disso, enquanto Jesus está na montanha, rezando (montanha é sempre uma realidade de proximidade com Deus, algo que tem a ver com a esfera celeste), os apóstolos estão “no mar”. Eles são convidados a “sair”, a descer da montanha (como no Tabor, na Transfiguração) e devem se imergir na realidade, lembrando quem são, pescadores, e no próprio dia-a-dia desempenhar sua missão como cristãos.
- No mar, no dia-a-dia, há vento e nem sempre a situação parece favorável. Em tal caso, quanta fé se tem em Deus? É só ela que pode resolver nossas fraquezas e nos levar para a direção correta...
- A propósito, a direção apontada é a “outra margem”. Nas narrações dos evangelhos a “outra margem” é o lado do Lago da Galileia que não é Israel, é uma terra estrangeira, aonde estão os “pagãos”, aqueles que não acreditam no mesmo Deus dos judeus. É para lá que Jesus manda os apóstolos, como ele mesmo várias vezes foi (ver o episódio do endemoninhado da terra dos gadarenos). Não estaria dizendo para ousar, sair do próprio mundo, deixar as próprias seguranças, partir para uma “terra” desconhecida, ecoando o chamado feito ao nosso pai na fé, Abraão: “sai da tua terra e vai”?
Repetindo, esses são alguns exemplos. Você pode acrescentar os seus. Boa leitura.