A sua pregunta é um pouco complexa, mesmo na sua elaboração. Isso demonstra que o tema, em si, não é de fácil compreensão. Muito mais complexo se aplicado à Bíblia. Espero, nessas linhas, ajudar na sua compreensão.

 

Hermenêutica

A primeira coisa importante, que deve necessariamente ficar clara, é que estamos falando de uma hermenêutica, de uma leitura bíblica. Não existe essa questão, em si, nos textos bíblicos, mas em nós que lemos a Bíblia. Quando alguém toma nas mãos um texto, usa, às vezes inconscientemente, “óculos” que dão uma certa cor àquilo que lê. Esses “óculos” podem ser uma visão feminista, uma visão sociológica, uma ideia fundamentalista, uma perspectiva histórica, etc. E também uma visão que considera o tema do gênero. Essas atitudes do leitor são ditas “hermenêuticas”.

Tendo isso presente, não podemos falar de “literatura do gênero” e nem desse aspecto nos evangelhos. Por isso, deveríamos mudar a sua pergunta colocando-a mais ou menos assim: como é a ideologia do gênero aplicada aos evangelhos?

 

Estudo de gênero – Ideologia do gender

Essa área não é algo exclusivamente relativo à religião, mas um aspecto da reflexão sociológica que obviamente também se aplica à teologia e à Bíblia.

A questão do gênero é o valor, o significado, o destino ou os sonhos que associamos à determinação sexual de uma pessoa. Esse tipo de estudo não visa afirmar que homens e mulheres não existem ou não são diferentes, mas que sexo não é gênero. Ou seja, o estudo do gênero afirma que o sexo é uma realidade inata, com a qual se vem ao mundo, mas o gênero é outra coisa: é o valor, a cor, o papel, o significado, o caráter, os limites e as expectativas que eu atribuo ao sexo. Existe uma “construção social” que se atribui ao homem ou à mulher que condicionam o seu futuro, a sua caminhada na sociedade. Em outras palavras, o estudo do gênero denuncia o fato que na nossa cabeça a mulher nasceu pra fazer certas coisas e o homem outras, de maneira determinada, imposta. Isso impede que a pessoa seja completamente livre para traçar seu percurso histórico.

O “gender” é apenas um critério de análise, uma hermenêutica que pretende mostrar que não existe uma lei natural que determina o caráter, o papel e o destino de homens e mulheres, mas é aquilo que pensamos que uma pessoa tem que ser, precisa se tornar ou como tem que se comportar por causa do seu sexo. O gênero, portanto, é uma expectativa social e tem a ver com os valores culturais. Está tão dentro de nós que, muitas vezes, parecem naturais.

Penso que a primeira coisa que deveríamos fazer é não pensar que exista um complô, uma “ideologia do gender”. Essa falsa impressão pode levar a um retrocesso, com o risco que se percam certas conquistas já realizadas, que pareciam sólidas, em relação aos papeis, à dignidade e aos direitos das mulheres, uma categoria que sofreu tanto com atitudes de exclusão.

Não deixe de ler essa entrevista com Giannino Piana, que aborta a questão desde a perspectiva teológica.

 

Como aplicar isso à leitura bíblica e à teologia?

Logo no início da Bíblia aprendemos que a mulher foi criada à imagem de Deus (Gênesis 1,27). Por isso podia ser ultrapassado, coisa velha, nos perguntar sobre o papel da mulher na Bíblia, na igreja. Mas se nos debruçamos sobre a história da teologia, certamente nos depararemos com interpretações que devem ser consideradas inadmissíveis e penalizantes para as mulheres. Há, sem sombra de dúvidas, um tipo de mulher, uma construção de gênero, que se construiu durante a história, fruto de uma reflexão teológica e leitura bíblica sobrea mulher, sobre a espiritualidade feminina e o papel da mulher na igreja que foi feita exclusivamente por homens e com uma mentalidade patriarcal. Nem sempre são ideias velhas, prescritas. Ainda hoje existem visões parciais.

Muitos estudos destacam que a Bíblia, desde o início, é inclusiva, que deveriam fundamentar as concepções teológicas da mulher e do feminino. A bíblia usa, sem distinção, metáforas masculinas e femininas para falar de Deus. É preciso sublinha-las, tirando-as do silêncio em que a tradição masculina as havia deixado. A Bíblia mostra também mulheres importantes na história da salvação. A mensagem revolucionária e o comportamento de Jesus com as mulheres é outro elemento que precisa ser cada vez mais destacado, para que a mensagem evangélica não seja sufocada por ideologias patriarcais na construção dos papéis da mulher na vida eclesial, muitas vezes diminuído construir e justificar o clericalismo eclesial.

Por isso, o estudo de gênero, como categoria analítica no campo teológico, desmascara antigas e novas ideologias que têm repercussões sobre as concepções da natureza do ser humano, do lugar e do papel da sexualidade na pessoa, da dignidade das pessoas na Igreja e na sociedade, a ponto de abrir nossos olhos para perceber ideologias modeladas por um comportamento patriarcal, que ainda podem influenciar a construção doutrinária e sacramental do cristianismo.

Deveríamos nos perguntar por que Deus é homem... Definindo-o assim, toda reflexão teológica tem o limite do gênero. Na verdade, Deus não tem sexo, mas para o fiel ele é dito, imaginado, descrito e pintado (nas catedrais como no próprio espírito) através de todas as nossas convicções, valores como "ele". Isso tem uma grande repercussão sobre a vida cristã.

 

A contribuição científica das mulheres

A aplicação dessa hermenêutica tem a ver, quase sempre, com uma perspectiva dita “feminista”, pois a parte deixada como minoria é sempre a mulher, não só na sociedade, mas também na história do cristianismo. Além de documentos oficiais, como aquele do Vaticano, há várias mulheres que abordam esse tema de maneira profunda, por exemplo Judith Butler, filósofa. Uma análise coerente presumiria a leitura dos seus textos (veja aqui alguns nomes).