Nestes dias, as Igrejas cristãs de tradição antiga se preparam para a festa de Pentecostes que celebra a vinda do Espírito de Deus para fecundar todas as culturas e tornar os discípulos e as discípulas de Jesus capazes de compreender os diferentes idiomas e linguagens da humanidade. É a base da vocação para o diálogo com o diferente e a unidade. Por isso, é estranho que, exatamente nestes dias, no mundo todo, apareçam grupos de cristãos e pastores fazendo campanha contra o romance "O Código da Vinci"do escritor Dan Brown e o filme dirigido por Ron Howard, inspirado no livro.
Estas campanhas contêm vários riscos e enganos. Podem até se transformar em peça favorável à obra que querem atacar. Dizem que as informações do romance sobre o cristianismo e as origens da Igreja são todas mentirosas. No entanto, negam com tanta força as afirmações do livro que parecem aceitar a tese do autor de que se os tais segredos contidos no romance fossem descobertos, destruiriam a fé cristã. Colocam-se, assim, no mesmo nível do escritor em seu fundamentalismo. A diferença é que Dan Brown se propôs a escrever um romance e não a reconstituir a história. Os tais cristãos que pensam defenderem a fé atacando O Código da Vinci, além de fazer propaganda da obra, ao reduzir a fé a certas expressões históricas do dogma, testemunham uma fé fechada e rígida. Esta imagem negativa do cristianismo só os cristãos podem dar.
Para quem não leu o livro e não viu o filme é difícil resumir a complexa trama do romance. Um diretor do Museu do Louvre é descoberto assassinado. Junto ao corpo, se encontram estranhos códigos, escritos com seu sangue. A polícia francesa pede a ajuda de Robert Langdon, norte-americano, professor de simbologia religiosa, que acaba se tornando suspeito. Robert e Sophie, neta da vítima, saem como detetives, por vários países da Europa, atrás do segredo ali contido. Descobrem que o avô de Sophie era um dos líderes do "Priorado de Sion", sociedade secreta a qual teria pertencido Leonardo da Vinci e que tem como meta proteger um segredo milenar. Este crime, como outros, teria sido cometido pela Opus Dei, associação católica tradicionalista, que faz tudo para impedir que se descubra a verdade, há dois mil anos, ocultada pela Igreja: Jesus Cristo foi casado com Maria Madalena. Era um simples homem que, no século IV, o Concílio de Nicéia (ano 315 d.C.), sob pressão do imperador Constantino, teria divinizado. De fato, após a sua crucifixão, Maria Madalena, grávida de Jesus, teria migrado para a França e ali tem descendência, sendo que até hoje existe ali uma herdeira sua.
Atualmente, no mundo inteiro, comunidades cristãs da América Latina, África e outros continentes sentem a necessidade de "desocidentalizar"o cristianismo, ou seja, que se expresse a fé cristã de um modo novo, mais apto a tocar no coração da humanidade pluralista de hoje. Historiadores e teólogos sabem que foi sob pressão de imperadores e de conjunturas políticas pouco evangélicas que alguns dos Concílios antigos formularam importantes dogmas da fé cristã. É verdade que os imperadores antigos se utilizaram do cristianismo e grande parte da hierarquia eclesiástica da época se deixou utilizar politicamente para conquistar o poder em nome de Deus. É verdade também que o imperador Constantino teve forte influência na afirmação dogmática do Concílio de Nicéia (315) sobre a natureza divina de Jesus. Mas, não é verdade que tenha "inventado"a divindade de Jesus. A fé de que, de alguma forma, Jesus é o Filho de Deus vem de tempos antigos. Apóia-se em afirmações dos Evangelhos que, embora tenham significado mais simples, permitem esta interpretação. Hoje, várias correntes da Teologia estão aprofundando e propõem uma nova forma de compreender a pessoa de Jesus e sua unidade com Deus. Não há um dualismo entre natureza humana e divina. "Jesus foi tão humano, tão humano, que se tornou divino", exclamou o papa João XXIII. Logo, Jesus se tornou divino.
Conforme o que se percebe no romance, parece que uma possível relação amorosa entre Jesus e Maria Madalena seria a prova de que este é simples homem e não Deus. Ora, desde os primeiros séculos, a maioria dos cristãos professa que se Jesus é divino, o é justamente por ser totalmente homem. A oposição entre ser divino ou humano não existe. Muitos dos que entram nesta polêmica não percebem esta contradição. Ao negar que Jesus pudesse ter vivido uma relação matrimonial com Maria Madalena pelo fato de ser Filho de Deus, reforçam uma visão sobre a divindade de Jesus que a Igreja cristã nunca aceitou. A questão se Jesus foi casado ou não com Maria Madalena pode ser discutida em termos históricos, (não existe prova de tal relação).
No ponto de vista histórico, as alusões a uma possível relação amorosa entre Jesus e Madalena se baseiam em manuscritos descobertos em 1948 em Nag Hammadi (Egito). São textos originários de seitas gnósticas (hoje diríamos esotéricas) dos séculos II e III. Entre eles, o chamado "Evangelho de Filipe"chama Maria Madalena de "a companheira do Senhor"e diz que Jesus a beijava na boca. Nestes textos antigos, tais informações têm um sentido bem diferente da que ganham ao ser lidos hoje. Os gnósticos queriam superar os limites da corporalidade para ser mais espirituais. Para eles, a união entre o masculino e o feminino era vista como superação da divisão corpórea. Jesus e Madalena eram exemplos desta integração. O beijo na boca era como uma senha do grupo. Era sinal da comunicação da sabedoria interior. Dizer que Jesus beijava Madalena na boca era a forma de dizer que Jesus pertencia ao grupo deles e Maria Madalena era depositária privilegiada da sabedoria comunicada por Jesus.
O livro aborda questões que a Igreja deve olhar com mais atenção, como a integração entre o masculino e o feminino e o conseqüente lugar da mulher na Igreja. Dan Brown nos recorda que, nos primeiros tempos do cristianismo, algumas comunidades viviam isso de forma mais feliz. Maria Madalena era símbolo da comunidade cristã. Esta comunidade vive com Deus uma aliança de amor, simbolizada na relação entre o homem e a mulher. O próprio evangelho de João conta o encontro de Madalena com Jesus no jardim do sepulcro, na manhã do domingo, recorrendo a palavras do Cântico dos Cânticos, quando este narra a busca erótica da amada pelo amado (Ct 3). A tradição ocidental confundiu a figura de Madalena com a da mulher adúltera e com a pecadora que unge com lágrimas os pés de Jesus em Betânia. Marcos e Lucas chegam a dizer que Jesus teria expulsado dela sete demônios (Mc 16,9 e Lc 8,2). Mas, nenhum evangelho ou texto antigo a chama de pecadora, prostituta.
Maria Madalena é citada nominalmente como discípula de Jesus (Lc 8,1-2) e como testemunha da sua ressurreição (Lc 24,1-10). Na história do cristianismo, muitos interpretaram mal a expressão: "Maria Madalena, da qual haviam saído sete demônios"(Lc 8,2). Essa expressão criou uma série de preconceitos contra Maria Madalena. O número sete, sempre simbólico, parece indicar a gravidade da situação. No encontro com Jesus, ela recupera a harmonia interior e entra em um processo de crescimento e amadurecimento pessoal até atingir a plenitude do seu ser na experiência pascal (Cf. VV. AA. Raio-X da vida, círculos bíblicos do evangelho de João, São Leopoldo, CEBI, 2000. p. 133. (Col. A Palavra na Vida 147/148). No evangelho de Lucas (e nos outros evangelhos sinóticos) Maria Madalena é citada em primeiro lugar, indicando sua liderança no grupo de discípulas de Jesus. Por isso, desde o começo da tradição apostólica, Maria Madalena recebeu o título de apóstola dos apóstolos, porque ela recebeu a principal ordenação, sem a qual nenhuma outra teria sentido: ela recebeu a ordem de anunciar-lhes que Jesus estava vivo, ressuscitado.
O mais lamentável nessa história não é o que está atiçando a ira da maioria dos crentes. É que a fé cristã continue associada a nobres e cavaleiros de guerra e não a pessoas consagradas à paz e grupos empenhados em tornar este mundo melhor. Entretanto, isso Dan Brown não inventou. Ainda temos no mundo um cristianismo ligado à cultura de guerras, conquistas e segredos de corte. Em tal atmosfera, fica fácil fazer romances de mistério. São muitos os que pululam por aí, sobre lendas do Santo Graal, Irmandade do Santo Sudário e outros.
Na realidade, o tal Priorado de Sion nada tem a ver com cavaleiros medievais. Foi criado em 1961, por Pierre Plantard, francês que, para conquistar credibilidade, inventou documentos que o ligariam à dinastia dos merovíngios e o Priorado de Sion a ordens medievais. A pesquisa histórica descobriu que os documentos eram falsos, mas a fantasia agradou a muita gente. Quanto à Opus Dei, existe e é poderosa na Igreja e no mundo. Os crimes narrados no romance, atribuídos à Opus Dei são ficção. Entretanto, ao mostrar a relação entre fanatismo religioso e assassinato, o romance permite uma análise justa sobre fundamentalismos atuais, responsáveis por muitas das guerras que dilaceram o mundo.
O romance é comercial e o filme mais ainda. Entretanto, atraem multidões porque criam uma cumplicidade com as pessoas em procurar ver o humano " masculino e feminino " presente em Deus. O Código da Vinci faz com que muita gente, há tempos, desinteressada por qualquer assunto religioso, novamente aceite se interrogar sobre a fé e a espiritualidade. Insistem em discutir os fundamentos do cristianismo, o que pode não ser fiel ao dogma, mas é saudável para a busca espiritual.
Mesmo se muitas das informações do romance não têm consistência histórica, somos sempre convidados/as a prosseguir a busca, como a de Maria Madalena perguntando por Jesus no jardim da ressurreição ou como a da amada do Cântico dos Cânticos que procura o amado na noite escura da vida. Certamente Deus prefere ser procurado assim do que ser afirmado com a frieza do dogmatismo que não aceita discussões.
Marcelo Barros, monge beneditino e autor de 29 livros, dos quais o mais recente é "A Vida se torna Aliança", Orar ecumenicamente os Salmos. Ed. Rede da Paz, CEBI, 2006.
Padre carmelita, mestre em Exegese Bíblica e assessor do CEBI, CEBs, CPT e SAB. Email: gilvander@igrejadocarmo.com.br
O Código da Vinci e os códigos da vida
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