A Bíblia fala das ofertas de Caim e Abel em Gênesis 4,3-5. O texto diz assim:

Passado o tempo, Caim apresentou produtos do solo em oferenda a Iahweh; Abel, por sua vez, também ofereceu as primícias e a gordura de seu rebanho. Ora, Iahweh agradou-se de Abel e de sua oferenda. Mas não se agradou de Caim e de sua oferenda, e Caim ficou muito irritado e com o rosto abatido.

Como você pode ver, a bíblia não fala literalmente de uma disposição negativa de Caim, mas sublinha uma preferência divina. Existe uma contraposição entre a oferta de Abel e aquela de Caim, que está à base do fratricídio, pois Caim matará Abel por causa dessas ofertas.

Esse é um dos textos bíblicos considerados difíceis de entender. A dificuldade não deve nos afastar dele, mas representa um convite para refletir de maneira intensa sobre a mensagem escondida nessa narração. Sublinho aqui alguns elementos, esperando de em breve escrever um artigo mais detalhado.

 

Caim e Abel, uma proposta de fraternidade

Depois de contar a história arquetípica do primeiro casal, a Bíblia conta a história dos irmãos. Abel é uma palavra que lembra a “vanidade” do livro do Coelet; é a mesma raiz. Caim é um agricultor, como o pai. Abel, ao invés, começa um anova profissão, aquela do pastor. É destacado, nesse detalhe, a cultura sedentária e aquela dos nômades. É sem dúvida colocado em evidência a escolha de Abel. Ele, como pastor, representa a fidelidade, mas sobretudo a capacidade de contemplação. Caim exprime o “fazer”, enquanto Abel é contemplativo, espiritual.

Deus escolhe Abel e isso não deveria nos perturbar.

 

Deus escolhe o menor

O texto do Gênesis diz, literalmente que Deus “viu” a oferta de Abel e “não viu” a de Caim. Aparentemente a passagem revelaria um Deus que faz discriminação entre os irmãos. Na verdade, trata-se de uma sensação muito comum tanto na Bíblia quanto no nosso dia a Dia. O sucesso ou insucesso é, muitas vezes, atribuído a Deus: se prospero, quer dizer que Deus “mi vê”, enquanto a falência significa um abandono da parte de Deus. Obviamente não é assim.

O erro está em não entender a diversidade. Os pais conhecem bem a diferença entre um filho e outro, as capacidades de cada um. Nós, ao contrário, experimentamos a diferença como algo que temos “a menos” em relação ao outro, que tem “a mais”. Não conseguimos entender a situação em si mesmo e o problema é transladado ao outro e inclusive a Deus, que é tido como o responsável por uma situação chata que acontece comigo. Diante da experiência de fazer as mesmas coisas, do mesmo jeito, obtendo resultados diferentes – um conseguindo e outro não - ninguém fica indiferente e tenta encontrar uma causa.

No texto que lemos existe uma preferência divina. É algo muito frequente na Bíblia, especialmente quando falamos de irmãos. Recordamos, Isaque e Ismael, Jacó e Esaú, a parábola do filho pródigo... O texto não diz a razão da escolha e, na verdade, nunca fala que o outro é rejeitado. Deus “olha” sempre o menor, como acontece com Davi em relação aos irmãos (veja 1Samuel 16).

Sem prolongar muito a reflexão, acredito que o cerne da mensagem dessa passagem é o tema da fraternidade entre irmãos. Lembremos de um texto de Mateus 5,23:

se trouxeres a tua oferta ao altar e te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali mesmo diante do altar a tua oferta, e primeiro vai reconciliar-te com teu irmão, e depois volta e apresenta a tua oferta.

Caim, como testemunhará a sua ação assassina, não consegue sentir Abel seu irmão. Isso faz com que a sua oferta não agrade a Deus, pois mesmo buscando a relação com o divino, Caim não reconhece o irmão.