Esse pequeno artigo é um comentário sobre o filme Vai e viverai, que ganhou o prêmio do público do Festival de Berlim em 2006, do regista Radu Mihaileanu (título original Va, vis et deviens); Trata-se de uma co-produção entre Itália, França, Bélgica e Israel produzida por Elzév ir Films. Assistindo ao filme vi uma cena que mostra uma interpretação do texto bíblico do Gênesis, da criação do homem, a qual suscitou em mim, devido a sua originalidade, a vontade de condividir com nossos leitores o seu conteúdo. Sem entrar na questão se a interpretação é correta ou não, gostaria apenas mostrar como a Bíblia não é um livro morto, mas é letra viva, que se colora com aquilo que experimentamos no nosso cotidiano.
A trama do film parte da carestia que castigou a África na décade de 80. Durante aquele período os judeus da Etiópia tiveram a possibilidade de ir para Israel, ajudados também pelos Estados Unidos, pois eram considerados descendentes dos hebreus. Havia uma mãe desesperada, que convivia num acampamento com os judeus, mas ela mesma não era descendentes de judes. Para fazer com que o filho Schlomo, protagonista do filme, fuja da morte certa, ela diz para ele fingir que é hebreu e órfão e assim seja levado para Israel. Chega desse modo em Tel-Aviv, onde é adotado por uma família de origem francês que não conhece o seu passado. Durante todo o filme o menino convive com a recordação da mãe, que tendo ficado na Etiópia, lhe tinha obrigado a prometer que nunca reveleria a ninguém o segredo da sua origem até que se tornasse grande. Convive, portanto, também com o medo que o seu segredo seja revelado. Faz de tudo para mostrar que é judeu.
Essa sua tentativa é ainda mais latente quando, adolescente, começa a gostar de uma menina, Sara, que é filha de um judeu observante o qual não quer absolutamente que a sua filha tenha nada a ver com um judeu etíope, pois julga, como muitos outros em Israel, os emigrantes da Etíopia como não autênticos judeus. Para confirmar que é judeu, o jovem Schlomo se propõe para um duelo, com outro jovem judeu, no qual se respondia a uma questão bíblica. O encontro é fixado e o jovem etíopo se prepara com um rabi etíope, que aconselha o jovem a interpretar a bíblia não com a cabeça, mas com o coração. Diz que não deve “repetir como um papagaio, mas interpretar; colocar a si mesmo no texto”. O duelo acontece e a pergunta escolhida pelos rabis presentes é: “qual a cor da pele de adão”. E aqui chegamos ao ponto que queria. Portanto faço a transcrição das duas respostas: uma dada pelo jovem Miguel, um jovem judeu ortodoxo e a outra dada pelo jovem Schlomo, negro da Etíopia, que com sua resposta tenta conquistar o coração de Sara e a simpatia do seu pai.
A resposta do primeiro jovem sobre a cor de Adão é a seguinte:
“Adão foi criado à imagem de Deus e a cor escolhida foi a branca. Todos os hebreus estavam em pé. Depois do dilúvio Noé e seus filhos saíram da Arca. Noé amaldiçoou a descendência do seu filhoHam e o filho deste, Canan, dizendo: Maldito seja Canan; que seja escravo do seus irmãos (Gen 9,25) Cusch filho maior de Ham recebeu outra maldição: alguns discendentes de Ham terão a pele negra. Assim Cusch se tornou negro e dele nasceram os “cuschim”, a gente negra da Africa. E foi assim que os descendentes de Ham se tornaram escravos e negros.”
E a resposta do protagonista do filme é essa:
“No princípio era o Verbo. Deus criou a terra e a vida, dando à palavra um sopro. Deus confiou em cada homem, deu a cada um a palavra para que fosse um sopro pessoal, maravilhoso, diverso, profundo, humano, interpredando-o.
O nome Adamo vem da palavra hebraica “terra”, adamah. Deus criou adão com a terra, com a creta e a água. Deu-lhe o sopro, maravilhoso, como a palavra. Adão nasceu desse modo.
Adao é da cor da creta, vermelho, como os indios.
Adão não branco nem negro, mas vermelho.”
25 de janeiro de 2021
Há quase 15 anos da publicação do texto acima, recebi uma mensagem de um nosso leitor, que trasncrevo aqui abaixo e deixo para a leitura de todos. Muito obrigado, Anísio!
Procurei MUITO uma resposta na Biblia sobre como surgiram as cores das pessoas e não há resposta. Num pimeiro momento pode parecer preconceito mas é exatamente o contrári. É quem lê a Bíblia que tem que entender que a resposta não se encontra lá justamente porque não é relevante. Este texto sobre a cor, baseado num filme, é perfeito para explicar isso.
Inclusive há uma história indígena que é exatamente o que diz a resposta do protagonista e eu sempre achei perfeita. A história diz que o barro saiu primeiro cru, depois queimado e depois no ponto, gerando as cores, sendo os indígenas a cor do ponto certo, ou seja, a cor original. É muito bonito, humano e realista, e eu agradeço muito por esse texto estar disponível aqui no site. muito obrigado.