Essa é uma pergunta que 'incomodou' desde sempre muitos teólogos e místicos. Eu particularmente gosto de uma reflexão feita por Santo Agostinho, no Discurso 26, comentando o Salmo 94, na qual ele basicamente diz que Deus nos fez para cuidar de nós (infelizmente não encontrei em português, mas italiano pode ser lido aqui (https://www.augustinus.it/italiano/discorsi/discorso_034_testo.htm)
Uma resposta mais teológica, mas igualmente explicativa, encontra-se no primeiro número do catecismo da Igreja: “Deus, infinitamente perfeito e bem-aventurado em Si mesmo, num desígnio de pura bondade, criou livremente o homem para o tornar participante da sua vida bem-aventurada”.
Usando um versículo bíblico, podemos citar, entre outros, Jeremias 29,11:
Eu conheço os desígnios que formei a vosso respeito, desígnios de paz e não de desgraça, para vos dar um futuro e uma esperança.
Criados a sua imagem e semelhança
Outro aspecto importante da sua pergunta tem a ver com a nossa natureza. Assim diz o texto que lemos em Gênesis 1,26;27:
Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra.” Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele criou.
3 precisações exegéticas.
- “Façamos” – Deus fala como se fossem mais pessoas a realizar a criação do ser humano. Há várias explicações; há quem diz que aqui já temos um aceno à Trindade (padres da Igreja) e outros que falam de um plano deliberado por Deus e pela corte celeste (A setenta –Salmos 8,6 - e Hebreus 2,7). Alguns também pensam que o plural se usa por causa do nome usado para Deus aqui, isto é, Eloim, que é um nome no plural. Invés, provavelmente trata-se de um recurso da gramática hebraica que usa o plural quando Deus ou outra pessoa fala consigo mesmo (veja Gênesis 11,7).
- “o homem” – É um nome coletivo e por isso, mais adiante, se usa o plural “eles”. Comprende toda a humanidade.
- “Semelhança” – Parece um termo inserido para diminuir a importância de “imagem”, que significa ser símile fisicamente, como no caso de Adão e do seu filho (Gênesis 5,3). Portanto a presença de “semelhança” exclui o fato de igualdade.
“Imagem” e “semelhança”
O tema da imago dei é protagonista no meio teológico. Existe uma disputa na tradição em explicar o que isso significa. De qualquer forma há consenso em crer que essa frase bíblica quer dizer que o mistério do ser humano não pode ser compreendido fora do mistério de Deus.
No início da história da igreja temos o pensamento de Irineu, segundo o qual existe uma distinção entre imagem e semelhança. Ele diz que a ‘imagem’ significa uma participação ontológica (methexis), enquanto que ‘semelhança’ (mimesis) significa uma transformação moral. Tertuliano diz que Deus criou o ser humano e soprou o espírito vital como sua ‘semelhança’: a imagem não poderá nunca ser destruída, mas a ‘semelhança’ pode ser perdida, graças ao pecado. Agostinho não faz essa distinção e diz, invés, que a ‘imagem de Deus’ conduz o homem para Deus na invocação, no conhecimento e no amor. Tomás de Aquino sublinha que a ‘imago dei’ significa o fundamento da participação à vida divina do homem, que percebe esse dom através da contenplação, do intelecto. Tomás é contestado por Boaventura, que pensa que o homem alcança a ‘imago dei’ através da vontade, da ação religiosa. Entre os católicos e protestantes houve qualquer tensão sobre esse argumento. Os católicos foram acusados de considerar a ‘imago dei’ somente como um dado natural enquanto que os protestantes insistiam no fato que a imagem de Deus foi corrompida pelo pecado.
Esses pensamentos que aparecem repassando a história da teologia refletem as soluções dadas para os dois termos bíblicos, Zelem (imagem) e damut (semelhança).
O termo usado para imagem (zelem) aparece 17 vezes na Bíblia e 12 vezes se refere à uma imagem física, de pessoas, de ídolos, de deuses e outras 5 vezes no Gênesis: Gen 1,26. 27; 5,3; 9,6. A etimologia hebraica da palavra não ajuda na compreensão do termo. Semelhança, invés tem um significado transparente. O seu significado vem do verbo ‘ser como’, ‘parecer’, muito comum nas visões de Ezequiel.
Podemos dizer que existem 5 posições que tentam definir o conceito de ‘imagem e semelhança’.
- ‘imagem’ e ‘semelhança’ são duas coisas distintas. A ‘imagem’ é um dado estático, inerente ao ser humano, enquanto que ‘semelhança’ é algo sobrenatural, que tem a ver com a graça.
- ‘imagem’ se refere a aspectos mentais e espirituais do ser humano, que condivide com o seu criador.
- ‘imagem’ significa uma semelhança física com o criador. Essa tese se fundamenta sobre o argumento dado pelo vocábulo zelem.
- a ‘imagem’ faz com que o homem seja o representante divino na terra.
- a ‘imagem’ significa a capacidade da pessoa de relacionar-se com Deus.
Essas teorias parecem não satisfazer e conter toda a riqueza teológica desse texto, porém pode ser que cada uma dela contém um pouco de verdade. Eu particularmente penso que condiz muito bem com a Bíblia o aspecto mediador do ser humano, entre Deus e as outras criaturas. Por causa dessa missão a sua vida é sagrada. Além disso, é importante sublinhar que o homem é criado à imagem de Deus no seu ser inteiro. Não é apenas um aspecto da sua vida que é à ‘imagem’ de Deus; o ser humano no seu todo é imagem de Deus. Portanto todo dualismo deve ser descartado.