Nessas linhas queria sublinhar um aspecto particular que encontramos no texto de Mateus 4,12-17, onde se narra o comportamento de Jesus após a prisão de João, que também coincide com o início da sua missão. Vejamos o texto.

Ao saber que João tinha sido preso, Jesus se retirou para a Galileia. Deixou Nazaré, e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia, nos confins de Zabulon e Neftali, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías:
«Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galileia dos que não são judeus! O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; e uma luz brilhou para os que viviam na região escura da morte.»
Daí em diante, Jesus começou a pregar, dizendo: «Convertam-se, porque o Reino do Céu está próximo.»

Olhando de perto o texto grego, o texto original, o que salta aos olhos é que quando Jesus começa o assim dito "ministério público", ou seja, quando começa a anunciar o Evangelho e fazer milagres, ele "se retira" (muitas traduções em português não traduzem bem o termo grego e usam, como a Bíblia de Jerusalém, o verbo “voltar”). O verbo grego usado no original dessa passagem é "ἀνεχώρησεν(anechōrēsen). Trata-se do mesmo vocábulo usado para os "anacoretas", um termo que descreve os monges, as pessoas que vivem retiradas. E para onde vai Jesus quando "se retira"? Para a Galileia, a região dos gentios, coisa que Mateus sublinha, citando Isaías. A Galileia é uma região de várias grandes cidades e de grande variedade étnica. Parece-nos estranho pensar em um "retiro" que, em vez de ser uma fuga para o deserto e o silêncio, segundo a imagem evocada pelo termo "anacoreta", em vez de ser um distanciamento da comunidade humana, se apresenta - ao contrário - como uma imersão total na vida quotidiana, na multidão e no lugar onde existe o maior risco de "contaminação" com o estranho.

O verdadeiro "retiro" no deserto acontece no início do capítulo 4 de Mateus, imediatamente após o Batista ter anunciado que Jesus era aquele esperado. Mas aqui a formulação da frase é diferente: "ἀνήχθηεá¼°ςτá½´νἔρημονὑπὸτοῦΠνεύματος" (Ele foi conduzido ao deserto pelo Espírito). Usa-se o verbo ἀνάγω, na voz passiva, o que expressa ser conduzido em um movimento de baixo para cima, que aqui é causado "pelo Espírito". Mateus nos diz que este momento crucial, desencadeado pelo encontro com o Batista e o batismo, está sob o sinal do Espírito: Jesus é conduzido, é movido por Deus, para descobrir que tipo de messias ele é chamado a ser, e para enfrentar e superar as tentações que acompanharão sua vida.

O verbo anechoresen (ἀνεχώρησεν), nessa mesma forma, aparece 9 vezes no Novo Testamento, contando com Mateus 4,12. Mateus usa 7 vezes essa fórmula e isso mostra como ele dá uma importância particular a essa ação. Em Mateus 2,12 existe uma outra forma (ἀνεχώρησαν), que se aplica aos reis magos: “avisados em sonho que não voltassem a Herodes, regressaram por outro caminho para a sua região”.

A análise deste verbo nos dá a oportunidade de repensar a imagem de "fuga" por desprezo ao mundo, ou por medo do pecado ou da contaminação. Pelo contrário, indica a "fuga" de um contexto que dificulta a viagem e a missão, seu desenvolvimento e seu cumprimento. Jesus, como seu pai José, quando Cristo era criança, (Mt 2,14.22), "escapa" de um perigo que põe em risco o que ele ainda não tinha realizado.

Podemos dizer absolutamente que Jesus vive sua caminhada pelos caminhos do mundo em uma constante "fuga" de tudo que o leva às tentações da glória e do poder terrenos (no Evangelho de João, ele se subtrai claramente do perigo de ser proclamado rei) e que ele tem uma meta: seja a Galileia, o mar, a montanha ou o deserto para rezar e enfrentar o reacender-se das tentações...

O antídoto para este tipo de tentação é o encontro com a necessidade e a fragilidade. A "anacorese" de Jesus, que molda toda anacorese ainda hoje, é aquela subtração, aquela "renúncia" que nos permite estar em completa solidariedade com a condição humana. Em outras palavras, uma verdadeira encarnação.

Em apenas um caso na Bíblia, o "retiro" não tem uma meta e, portanto, nenhum objetivo: é o retiro de Judas, que tira sua própria vida (Mt 27,5).

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Elenco das passagens onde aparece o verbo ἀνεχώρησεν

Mateus 2,14 (José, pai de Jesus)
GREGO ORIGINAL: νυκτὸςκαὶ Ã¡Â¼Â€νεχώρησεν εá¼°ςΑá¼´γυπτον
José levantou-se de noite, pegou o menino e a mãe dele, e se retirou para o Egito.

Mateus 2,22 (José, pai de Jesus)
GREGO ORIGINAL: κατ' ὄναρ Ã¡Â¼Â€νεχώρησεν εá¼°ςτá½°
Mas, quando soube que Arquelau reinava na Judéia, como sucessor do seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Por isso, depois de receber aviso em sonho, José se retirou para a região da Galileia.

Mateus 12,15 (Jesus)
GREGO ORIGINAL: Ã¡Â¼Â¸ησοῦςγνοὺς Ã¡Â¼Â€νεχώρησεν Ã¡Â¼ÂκεῖθενΚαὶ
Logo depois, os fariseus saíram e fizeram um plano para matar Jesus.
Jesus soube disso, e se retirou desse lugar. Numerosas multidões o seguiram, e ele curou a todos.

Mateus 14,13 (Jesus)
GREGO ORIGINAL: Ã¡Â½ÂÃ¡Â¼Â¸ησοῦς Ã¡Â¼Â€νεχώρησεν Ã¡Â¼Âκεῖθενἐν
Os discípulos de João foram buscar o cadáver, e o enterraram. Depois foram contar a Jesus o que tinha acontecido.
Quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu, e se retirou de barca para um lugar deserto e afastado. Mas, quando as multidões ficaram sabendo disso, saíram das cidades, e o seguiram a pé.

Mateus 15,21 (Jesus em conflito com os fariseus)
GREGO ORIGINAL: Ã¡Â½ÂÃ¡Â¼Â¸ησοῦς Ã¡Â¼Â€νεχώρησεν εá¼°ςτá½°
Jesus saiu daí, e se retirou para a região de Tiro e Sidônia.

Mateus 27,5 (Judas)
GREGO ORIGINAL: τὸνναὸν Ã¡Â¼Â€νεχώρησεν καὶἀπελθá½¼ν
Judas jogou as moedas no santuário, se retirou, e foi enforcar-se.

Marcos 3,7 (Jesus)
GREGO ORIGINAL: μαθητῶναὐτοῦ Ã¡Â¼Â€νεχώρησεν πρὸςτá½´ν
Logo depois, os fariseus saíram da sinagoga e, junto com alguns do partido de Herodes, faziam um plano para matar Jesus.
Jesus se retirou para a beira do mar, junto com seus discípulos. Muita gente da Galiléia o seguia.

João 6,15 (Jesus)
GREGO ORIGINAL: ποιήσωσινβασιλέα Ã¡Â¼Â€νεχώρησεν πάλινεá¼°ς
Mas Jesus percebeu que iam pegá-lo para fazê-lo rei. Então ele se retirou sozinho, de novo, para a montanha.