Transcrevo aqui a pergunta completa do nosso leitor:

Existe uma crença muito forte entre os Ortodoxos e que também é compartilhada, menos efusivamente, por alguns Católicos e Protestantes de que Cristo, em sua descida ao inferno, teria amarrado "o valente" (Satanás) e resgatado os fiéis do Antigo Testamento. Poderiam me apontar, por gentileza, as razões bíblicas ou judaicas para esta crença?

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O texto bíblico fundamental para responder a sua pergunta se encontra na Carta de Paulo aos Efésios:

Jesus desceu às regiões inferiores da Terra. Aquele que desceu é precisamente o mesmo que subiu (Ef 4, 9-10).

Essa convicção foi recolhida no “símbolo dos apóstolos”, que é, tradicionalmente, o creio cristão: “Jesus Cristo desceu à mansão dos mortos, ao terceiro dia ressuscitou dos mortos”.

Em uma visão panorâmica, vemos que a partir de Paulo, a tradição teológica confessa, num mesmo artigo da fé, a descida de Cristo a mansão dos mortos e a sua ressurreição dos mortos ao terceiro dia, porque, na sua Páscoa, é da profundidade da morte que Ele traz a vida para todos.

Essa profissão de fé traz dois ensinamentos que são o cerne da resposta que estamos dando. O primeiro é que ao dizer que Jesus ressuscitou de entre os mortos (1Coríntios 15,20), os escritos do Novo Testamento sublinham que ele anteriormente à ressurreição, tenha estado na mansão dos mortos. Com isso fica claro que Jesus conheceu a morte, como todos os homens. O segundo ensinamento – e aqui provavelmente tem mais a ver com sua pergunta - Cristo desceu à mansão dos mortos como salvador proclamando a Boa-Nova aos espíritos que ali estavam prisioneiros confirmando assim a sua vitória sobre a morte.

 

Descida de Cristo ao inferno

A propósito desse segundo ensinamento, temos que lembrar 1Pedro 3,18-20:

Morto na carne, foi vivificado no espírito, no qual foi também pregar aos espíritos em prisão, a saber, aos que foram incrédulos outrora, nos dias de Noé, quando Deus, em sua longanimidade, contemporizava com eles, enquanto Noé construía a arca, na qual poucas pessoas, isto é, oito, foram salvas por meio da água.

É provável que os “espíritos na prisão” sejam aqueles que a tradição diz estarem na morte definitiva, no Hades (veja Mateus 16,18), que em hebraico é Sheol, a morada dos mortos.

Segundo a tradição, as pessoas que se encontravam nesse lugar estavam privados da visão de Deus. Tal era o caso de todos os mortos, maus ou justos, enquanto esperavam o Redentor, o que não quer dizer que a sua sorte fosse idêntica, como Jesus mostra na parábola do pobre Lázaro, recebido no “seio de Abraão”. Teriam sido precisamente essas almas santas, que esperavam o seu libertador no seio de Abraão, que Jesus Cristo libertou quando desceu à mansão dos mortos. Essa tradição diz que Jesus não desceu à mansão dos mortos para de lá libertar os condenados, nem para abolir o inferno da condenação, mas para libertar os justos que O tinham precedido.

Alguns exegetas pensam que “os espíritos em prisão” mencionados por Pedro sejam uma alusão a um livro apócrifo muito importante na literatura intertestamentária, o livro de Henoc, onde se diz que Henoc prega aos demônios acorrentados, tendo assim sido submetidos ao domínio do Senhor, Kyrios (veja Henoc 10 e Henoc 10). O mesmo contexto, embora com denotações diferentes, se pode ver lendo a Carta de Judas, versículo 6:

E, quanto aos anjos que não conservaram sua primazia, mas abandonaram sua morada, guardou-os presos em cadeias eternas, sob as trevas, para o julgamento do grande Dia.

Como conclusão, digo que a expressão “desceu ao inferno” reúne muitas ideias típicas do ambiente religioso do tempo de Cristo e que hoje nós sintetizamos de outros modos. O mais importante é destacar que Jesus morreu realmente, mas derrubou, uma vez por todas, o poder da morte e com isso também o poder do demônio, que, como diz Hebreus 2,14, “tem o poder da morte”.