Resumimos, no título, a reflexão do leitor, que replicamos na íntegra aqui abaixo:

Tenho lido vários autores sobre a problemática de Gn 1,27 – 2,7. Há em todos os escritores uma grande incoerência nas explicações deste tema, comparando a Bíblia num todo. Se todos dizem que só houve uma e única criação de homem e mulher, então estão todos os autores a dizer que somos frutos de incesto? E vemos, em toda bíblia, leis contra incesto. Não é isso contraditório com a crença de uma só criação de homem e mulher? De facto há dois registos de criação em Genesis, exatamente para nos dar a ideia de que efetivamente houve duas.

 

Esse tema da criação e, em geral, dos primeiros 11 capítulos do livro do Gênesis, é algo que provoca muita discussão e incompreensão. Todavia, começo afirmando que entre os estudiosos da Bíblia, aqueles que têm uma bagagem científica séria, existe bastante consenso e não há dúvidas sobre o texto bíblico em si. Mas é verdade que essa clareza que existe no campo científico não consegue ser adequadamente repassada para os fieis e o público em geral. Isso é fruto, primeiro de tudo, da incapacidade dos exegetas de transmitir verdades aprendidas de maneira séria e responsável graças a estudos profundos. Por outro lado, isso coincide com a pouca abertura dos fieis em entender a revelação divina, preferindo, muitas vezes, permanecer apegados a ensinamentos recebidos da tradição judaica e cristã.

 

Em que concordam os estudiosos

Na prática os biblistas repetem com insistências que os relatos da criação, como estão em Gênesis, não são contos históricos do que aconteceu no início e, como consequência, Adão e Eva não são personagens históricos. Por trás da história narrada existem elementos mitológicos, que o povo de Deus tomou emprestado das civilizações vizinhas para transmitir a própria compreensão da natureza e da criação, que era distinta daquela dessas civilizações. A mensagem central, presente no texto sagrado, é que tudo foi criado por Deus, que colocou o ser humano como centro da sua obra, reservando a ele um destino precioso. Através da sua palavra, deu ao ser humano instruções que garantiam a sua felicidade (o paraíso), mas, ao mesmo tempo, o deixou livre. Graças à liberdade, grande dom divino, houve o pecado, que levou o ser humano ao homicídio e a todas as outras formas de afastamento de Deus, o criador.

Sei que não é fácil mudar nossa perspectiva, pois crescemos aprendendo que Deus criou o ser humano modelando-o com a argila. Não se trata de mudar nossa teologia, que vê em Deus o nosso criador, mas de ler a Bíblia de maneira mais madura, abraçando uma leitura sábia que não nos empobrece, mas que nos faz crescer na fé. Você não deve ter medo de acolher essa leitura da Bíblia, mas tente medir os seus conceitos e confrontá-los com reflexões de pessoas que têm muitos mais instrumentos, sem excluir a fé em Deus criador, que colocou o ser humano ao centro da sua criação. É verdade que não somos donos da verdade, mas temos uma fé que busca entender e que não para nas próprias convicções, abrindo-se a um crescimento constante almejando chegar à verdade que é o próprio Deus, coisa que alcançaremos só quando estivermos com Ele.

 

A questão do incesto

Obviamente essa prática é condenada pela Bíblia, como lemos em Levítico 18,8:

nenhum de vós se aproximará de sua parenta próxima para descobrir a sua nudez. Eu sou Iahweh.

"Descobrir a nudez" é uma expressão que designa relações sexuais.

Além disso, podemos também considerar o texto da primeira Carta de Paulo aos Coríntios, no capítulo 5.

A sua hipótese para tentar ajustar o texto dos primeiros capítulos da Bíblia a essa norma não procede. Não temos duas criações, mas dois modos diferentes de ver a criação, coisa que simplesmente prova o fato que esses contos não são históricos, mas expressões de fé que tentam descobrir como Deus criou o mundo e o ser humano. É uma missão inútil tentar conformar a história com quanto contado nos primeiros capítulos da Bíblia, pois ali o enfoque não é histórico.