Essa é uma boa pergunta e uma resposta bem dada pode ilustrar muito bem qual é a dinâmica e pedagogia divina em relação ao ser humano.
Em síntese, Deus escolheu o homem para escrever a Bíblia porque o ser humano é central no plano salvífico divino e a sua revelação não é uma imposição, mas um diálogo que respeita os limites humanos.
Para marcar a particularidade da Bíblia, poderíamos ver a lógica da revelação no islamismo contida no Alcorão, o livro sagrado do Islã. Essa religião é muitas vezes acostada ao Cristianismo porque, como nós, eles também se baseiam em um livro sagrado, o Alcorão. De acordo com a tradição muçulmana, Maomé, aos 40 anos, recebeu a visita do Arcanjo Gabriel e este lhe fez revelações acerca da existência de um único deus, Allah, e que Maomé, assim como Abraão, Moisés e Jesus, era um de seus profetas, tendo como principal missão a divulgação de palavra divina entre os homens. Maomé, dada a suposta condição de iletrado, buscou recitar as revelações que lhe eram feitas e, após a sua morte, esses ensinamentos foram reunidos e compilados no chamado Alcorão, que em árabe significa “recitação”.
Para nós cristãos e judeus, a lógica da revelação divina não é a mesma. É verdade que como os muçulmanos, acreditamos que o nosso Livro, a Bíblia, vem de Deus. Mas não foi ditada: foi escrita por seres humanos INSPIRADOS pelo Espírito Santo. O detalhe particular dos autores da Bíblia está, portanto, no tema da “inspiração”, coisa não tão simples de entender. Veja esse artigo, onde explicamos de maneira mais direta esse tema (https://www.abiblia.org/ver.php?id=5993 ).
Dando uma resposta direta à sua pergunta, retomando quanto dito já acima, a escolha de seres humanos como escritores da Bíblia tem a ver com a natureza da relação divina com o ser humano. Deus quis que fosse assim porque essa é a sua lógica quando se trata de comunicação conosco. Caberia aqui, assim, explicar qual é essa lógica, recordando sempre que, o fato de terem sido escritos por inspiração do Espírito Santo (cf. Jo 20,31; 2Tm 3,16; 2Pd 1,19-21; 3,15-16), os livros da Bíblia, em última instância, têm a Deus por autor.
A pedagogia divina
Para explicar a lógica divina da revelação, recorro a uma imagem, limitada, mas eficaz, já usada em outras respostas aqui no site. Imaginemos a Deus como um professor de matemática e nós como alunos. Houve um tempo de nossas vidas quanto tivemos que aprender a soma de 1 + 1, coisa que conseguimos graças à paciência do nosso professor, quando éramos pequeninos. É uma conta básica e insignificante para alguém que sabe resolver equações complicadas, mas é fundamental como base do nosso conhecimento e, mesmo não nos dando contas, precisamos disso para resolver contas complicadas. Além disso, por esse aprendizado devem ainda passar as crianças que hoje entram na escola. Ou seja, mesmo já sendo do conhecimento de todos que 1+1 é igual a 2, as crianças precisam aprender isso.
Aplicando essa lógica à revelação de Deus através da Bíblia, o povo – e nós com ele - aprendeu aos poucos a conhecer a Deus. E esse processo aconteceu dentro de sua história, passo após passo. Também os escritores bíblicos entram nesse processo. Deus, nesse sentido, é um verdadeiro pedagogo. Além de tudo, essa dinâmica é válida ainda hoje como metodologia para aprender quem é Deus. É por isso que é fundamental para todos nós ler ainda hoje o Antigo Testamento, textos que muitos consideram obsoletos.
O Mistério da Inspiração
Por último, mas algo igualmente importante, proponho que reflitamos sobre o Mistério que está por trás do tema da inspiração. As coisas de Deus são marcadas pelo Mistério. Não porque estão escondidas, mas porque não logramos entende-las completamente. A busca de uma explicação “racional” pode dar origem a ideias falsas sobre esta realidade.
Em síntese
Resumidamente, dizemos que a colaboração entre Deus e os autores dos livros bíblicos não foi um mero ditado por parte de Deus. A Bíblia nos revela em cada página épocas, estilos, linguagens, interesses diferentes, que testemunham a personalidade dos autores que escrevem. Deus não instrumentaliza o homem: estimula e espera sempre uma colaboração a nível humano. Existem raros casos na Bíblia nos quais Deus ordena de colocar por escrito qualquer coisa (Ex 17,14; 34,27; Jr 36, 1-2), mas não dita nada.
A inspiração, finalmente, não é também entendida no sentido que Deus tenha feito escrever só uma parte da Bíblia (as perícopes de mais elevada religiosidade, verdades mais sublimes) deixando o resto ao autor humano. Não existem, no livro sagrado, textos só de Deus ou só do homem. Na Bíblia tudo é de Deus e tudo é do homem.