O valor da Torah para os cristãos é um tema sempre atual e muito discutido desde o começo da comunidade cristã. O primeiro assim chamado “concílio”, realizado em Jerusalém, poucos anos depois da morte de Cristo, como contado em Atos dos Apóstolos 15, teve esse assunto como tema fundamental: o seguidor de Cristo devia ou não seguir as Leis da Torah, devia ou não ser circuncidado? Alguns, de fato, diziam “Se não forem circuncidados, como ordena a Lei de Moisés, vocês não poderão salvar-se”. É verdade que o tema de fundo era a entrada de não judeus na igreja, mas a situação revela que desde o início esse tema esteve presente no debate. Relembremos a decisão dos apóstolos:

“Decidimos, o Espírito Santo e nós, não impor sobre vocês nenhum fardo, além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e das uniões ilegítimas. Vocês farão bem se evitarem essas coisas. Saudações!” (Atos 15,28-29).

Dito isso, acredito que uma resposta adequada a sua pergunta passa pela aclaração de dois pontos que são implícitos na sua pergunta.

 

Jesus é Deus

Em relação a “discípulo” e “mestre”, não é bem claro, mas dá a impressão que você considera Jesus como discípulo de Deus. Se você pensa dessa forma, não é correto do ponto de vista cristão, pois para nós Jesus é Deus. E, portanto, não existe dicotomia em seguir Jesus pensando que não se está seguindo a Deus: se seguirmos o que Jesus disse no Evangelho, podemos ter certeza de estarmos fazendo a vontade de Deus.

 

O que significa Torah?

Outro elemento que precisa ficar claro é sobre o que é Torah. Você já insinuou na pergunta que se trata de “instrução”. É uma palavra que aparece 220 vezes no Antigo Testamento e muitas vezes traduzimos como Lei e se usa para indicar os 5 primeiros livros da Bíblia, que em grego ganharam o nome de Pentateuco. A tradução “Lei” não rende bem a ideia desse vocábulo que, como você já indicou na pergunta, indica mais uma “instrução”, “ensino”, “guia”. A palavra Torah representa o coração da fé, da moralidade e da espiritualidade judaica. Ele indica o caminho certo a seguir, uma verdadeira orientação na vida pessoal e social. A tradução de Torah como “lei” nos pode levar a um equívoco, pensando que se trata simplesmente do que fazer ou não fazer, de medidas legais. Mas é muito mais do que isso. Por trás dessa palavra está o conceito de Palavra de Deus; não é uma simples lei, mas uma orientação da vida pessoal e social. André Chouraqui, judeu, assim descreve a Torah: “

La tôrah è quindi la parola di Dio, è l’anima che regge l’esistenza del singolo fedele ma anche di tutta la comunità. Non è solo una legge, ma un vero e proprio orientamento della vita personale e sociale. Come scriveva un noto studioso ebreo, André Chouraqui, “A Torah é o caminho, a verdade, a vida, o modelo divino que nos permite ser plenamente filhos de Deus. Ela nos liberta da limitação de nossa condição carnal e nos introduz em nossa vocação sobrenatural.”

Tudo isso é para deixar claro que quando Jesus diz que não veio para abolir a Lei e os Profetas, em Mateus 5, não entende dizer que veio para cumprir os preceitos, mas que veio para cumprir a Palavra de Deus, a vontade de Deus. E os cristãos seguem essa mesma linha, fazer a vontade de Deus que é revelada através da Palavra de Deus.

Os preceitos fazem parte do plano de revelação de Deus, mas a Sua palavra não se limita a eles. O mandamento e as leis em geral mostram como o ser humano é criatura, evitando assim com que ele se eluda de ser Deus. O mandamento traça o perímetro de ação da humanidade, indicando que tem limites, que a realização de sua vida depende da escuta da Palavra de Deus. Junto com o mandamento/lei vem outro grande dom, que é aquele da escolha: o ser humano é uma criatura que escolhe. Para a Bíblia o ser humano é livre e essa é a perfeição da obra divina. É nesse sentido que encontramos dito em Deuteronômio 30,9-10:

O Senhor, seu Deus fará prosperar as iniciativas suas, o fruto do seu ventre, o fruto dos seus animais e o fruto do seu solo. Porque o Senhor voltará a ter prazer com a felicidade de você, assim como tinha prazer com a felicidade de seus antepassados. A condição, porém, é que você obedeça ao Senhor seu Deus, observando-lhe os mandamentos e estatutos escritos neste livro da Lei, e que você se converta com todo o coração e com toda a alma para Javé seu Deus.