Vou tentar dar uma resposta colocando elementos basilares para mostrar como é complexa a interpretação da Bíblia e deixar alguma provocação para que se possa percorrer um caminho de amadurecimento na leitura da Bíblia. Deixo claro, logo aqui no início, que existem vários estágios de leitura e que a Bíblia é um livro que está ao alcance de todos e dele podemos tirar muitas coisas ou, também, ver nele algo árido.

Gostaria de começar essa pequena resposta recordando uma passagem que se encontra em Atos dos Apóstolos 8,30-31:

Filipe correu e ouviu que o eunuco lia o profeta Isaías. Então perguntou-lhe: ‘entendes o que lês?’ ‘Como o poderia, disse ele, se alguém não me explicar?’

Essa experiência que conta o início da difusão da Boa Nova resulta ser comum também para nós, hoje. Quantas vezes nos deparamos com um texto bíblico, entendemos as palavras, conhecemos as imagens usadas, percebemos o sentido geral do texto, mas, ao mesmo tempo, nos damos conta que algo nos escapa e não compreendemos realmente o que estamos lendo. É natural, então, perceber que precisamos de alguém que nos ajude a interpretar e entender o texto bíblico que lemos.

O fato de a Bíblia ter nascido há muitos séculos e em culturas tão diferentes da nossa implica em vários problemas quando a lemos, problemas de compreensão e interpretação. A linguagem, os símbolos, os personagens, a geografia, as imagens da vida cotidiana usados nele exigem um estudo que nos ajude a fazer a transição do texto para a nossa compreensão dele.

A explicação para entender o texto se realiza através de um verdadeiro "trabalho", um esforço que envolve vários níveis.

Gosto de uma imagem usada pelo famoso exegeta jesuíta espanhol Alonso Schöekel, que falava desses níveis como se fosse um edifício de três andares, que percorremos do térreo até o último. No primeiro andar está o exercício da compreensão geral do texto: leio uma passagem bíblica e mi ponho perguntas que procuro responder, dando um sentido àquilo que estou lendo. Isso é exegese! Mas se quero responder com responsabilidade e de maneira sistemática, tenho que ir pro segundo andar. Nesse nível se trata de usar um método para compreender um texto, um método exegético. Estamos falando de instrumentos científicos que podem ajudar a compreender de maneira mais profunda e eficaz aquilo que o texto está dizendo. E finalmente, se quisermos termos uma panorâmica sobre todo esse processo, subimos ao terceiro andar, onde estaremos no nível da hermenêutica, que é a reflexão teórica, a perspectiva geral, sobre a compreensão e a interpretação de um texto literário, e responde a perguntas tais como: como surge um texto literário? Como a linguagem é condicionada pela mensagem que comunica? Que condicionamento está presente no leitor (por exemplo, sociológico, psicológico, educação recebida...)?

Entrar no primeiro andar é muito fácil, pois, se gostamos da Bíblia, entramos todos. De fato, todo aquele que lê a Bíblia faz exegese. Mesmo a pessoa mais simples, lendo um texto procura dar-lhe um sentido, aplicá-lo à própria vida, interpretá-lo.

 

Métodos exegéticos

O passo seguinte, o método exegético, é algo mais complexo, pois essencialmente exige, de alguma maneira, uma formação acadêmica. Há muitos métodos, cada um com regras específicas, dependendo dos diferentes elementos que caracterizam o texto: suas fontes, suas tradições, textos de outras culturas contemporâneas (estudo comparativo) ou os estágios históricos da redação; ou ainda os elementos narrativos (por exemplo, as frases exortativas, as cenas da história, suas perguntas etc.: método de análise narrativa), o estilo, as formas literárias e as figuras de linguagem.

Um grupo de métodos muito conhecido é o histórico-crítico. Ele reúne várias dessas técnicas que dedicam uma atenção ao desenvolvimento histórico e análise detalhada do texto. Entre outras, inclui disciplinas como a crítica textual, a crítica das formas (poesia, narração, apocalíptica), a crítica da redação (confronto entre os 3 evangelhos sinóticos), a crítica retórica (persuasão em um discurso, em uma carta), sociologia, semiótica (as estruturas dentro de um texto), etc.

Para fazer um exemplo concreto, tomamos primeiro de tudo uma aplicação do método ligado à estrutura de um texto, o último mencionado acima, uma metodologia que o leitor comum é pouco acostumado a usar, mas que nesse exemplo fica evidente quanto ele seja importante. A semiótica é uma ciência que analisa a comunicação observando cada tipo de mensagem e defendendo a tese de que a sua transmissão se apoia em recursos literários formados por códigos definidos. Em outras palavras, o texto tem uma organização interna que o leitor deve respeitar para que a mensagem seja melhor entendida. Por exemplo, o soneto tem sempre 14 estrofes, que se dividem em 2 quartetos e 2 tercetos.

Nessa lógica, convido a ler a parábola dos trabalhadores enviados à vinha, que termina em Mateus 20,16, com a frase “eis como os últimos serão primeiros e os primeiros serão últimos”. Normalmente lemos essa parábola começando em Mt 20,1. Todavia, no último versículo de Mateus 19 encontramos uma frase muito parecida com aquela que conclui a parábola: Muitos dos primeiros serão últimos,  e muitos dos últimos, primeiros”.

Encontramos na bíblia um recurso literário que se chama “inclusão”, que consiste na prática de colocar uma frase parecida no início e no final da seção de um texto, formando assim uma moldura que limita e evidencia a sessão. Isso é muito útil para determinar exatamente a intenção do autor bíblico, que transmiti a sua mensagem dentro desse quadro bem limitado, sublinhando com essa repetição a intenção do texto.

No caso dessa parábola, é evidente que quando a Bíblia, na Idade Média, foi dividida em capítulos, a lógica do autor não foi respeitada e nós, hoje deveríamos ler tal passagem começando de Mateus 19,30 e sabendo que o autor quer falar do tema primeiros e últimos.

Esse é apenas um exemplo para mostrar como é importante aplicar métodos para a leitura da Bíblia e para deixar claro que também é importante adquirir certas ferramentas que permitam a aplicação do método. Não significa que é necessário que todos sejam espertos em algum método, mas é importante ter consciência que há necessidade de espertos que auxiliem na compreensão “técnica” de um texto e de como isso ajuda a concentrar a atenção na correta mensagem de tal perícope.

O importante, na leitura da Bíblia, é saber que ela é Palavra de Deus, mas que é inserida na história concreta do povo de Israel e que para entender de maneira mais plena a mensagem divina, precisamos aprofundar a compreensão do ambiente e estruturas que permitiram que a Boa Nova chegasse até nós. Nem todos conseguem fazer esse percurso, mas todos podem se apoiar em pessoas e instrumentos que são cada vez mais populares, presentes em livros ou até mesmo em recursos online.