Você menciona uma história contada em Juízes 11, ligada a um dos assim ditos “juízes menores”, Jefté, que se desenvolve no contexto da guerra de libertação contra os Amonitas. Em vistas do combate contra esses inimigos do povo de Deus, o juiz fez o seguinte voto ao Senhor:
“Se entregares os Amonitas nas minhas mãos, aquele que sair primeiro da porta da minha casa para vir ao meu encontro quando eu voltar são e salvo do combate contra os Amonitas, esse pertencerá a Iahweh, e eu o oferecerei em holocausto” (Juízes 11, 30-31).
Jefté vence a batalha e, voltando para casa, a primeira que lhe sai ao encontro é sua filha única. O texto bíblico diz que o juiz cumpriu o voto que fizera.
Conhecemos bem como a Bíblia proíbe o sacrifício humano, considerando-o como uma abominação (veja os textos abaixo). E como pode então esse juiz sacrificar a sua filha? Diante dessa problemática, muitos pretendem ver na palavra “holocausto” não um sacrifício cruento, mas um tipo de “consagração”. Nesse caso, a filha não teria sido morta, mas consagrada ao Senhor.
Essa hipótese é pouco provável. É mais autêntico pensar na lógica da história da salvação, quando a humanidade se vai descobrindo na via do Senhor. No tempo dos juízes, Israel vivia uma situação de intenso contato com as tradições de outros povos e religiões, que sem dúvidas podia incluir o sacrifício de seres humanos. Jefté é alguém escolhido para libertar o povo, mas é também uma pessoa normal, inclusive uma pessoa bastante estranha: filho de uma prostituta (estrangeira), expulso de casa pelos irmãos e reuniu em torno de si uma turma de bandidos. É essa pessoa que vai ser instrumento de Deus para libertar o povo. Não pensaríamos nunca que Deus usasse pessoas assim para seus planos. Ao invés, é bem ele que vence os Amonitas, inimigos de Israel.
Em relação aos sacrifícios humanos, há algumas passagens bíblicas que mostram como podem ter acontecidos episódios de sacrifícios humanos no meio do povo de Israel. Por exemplo, 2Reis 16,3 diz que Acaz, rei de Judá, "chegou a fazer passar seu filho pelo fogo". A mesma coisa fez outro rei de Judá, Manassés (2Reis 21,6). Além disso, sabemos também que era um costume dos povos que confinavam com Israel, como os Moabitas (veja 2Reis 3,27). A própria atitude de Abraão que se presta a sacrificar o filho (Gênesis 22) pode também ser tomada como testemunho de um comportamento existente durante algum período da história de Israel.
Podemos ler essas passagens como um mistério da história da salvação. Não temos e não precisamos ter respostas para tudo, pois nem sempre tudo está sob o nosso controle. Também na história bíblica, nem tudo é como se espera. Além disso, não esqueçamos nunca que a bíblia fala da revelação de Deus, que acontece aos poucos, passo depois de passo. A história de Jefté acontece bem antes que os textos legislativos são colocados por escrito. Deus se revela aos poucos, respeitando o percurso histórico da humanidade, especialmente de Israel, o povo eleito.
Hoje sabemos perfeitamente que essa não é a vontade de Deus. A rp que todas essas passagens são vistas de forma negativa pelos autores dos textos bíblicos. Quero apenas mostrar que o escândalo que provoca em nós o sacrifício de uma pessoa humana não é o mesmo que podia provocar no passado.
Embora não descartando a possibilidade que Jefté possa tenha sacrificado a sua filha, é muito importante sublinhar que, se isso aconteceu, não significa que essa fosse a vontade de Deus. Ao contrário, a vontade divina é expressa na Lei. Lemos, a propósito:
- Não entregarás os teus filhos para consagrá-los a Molec, para não profanares o nome de teu Deus (Levíticos 18,21);
- Todo filho de Israel, ou estrangeiro que habita em Israel, que der um de seus filhos a Molec, será morto (Levíticos 20,2);
- Que em teu meio não se encontre alguém que queime seu filho ou sua filha (Deuteronômio 18,10).
Consagrar ou dar a Molec significa sacrificar com a morte, 'passar pelo fogo'.