Essa pergunta vem de Portugal e o comentário é mais rico do que a pergunta sintetizada acima. Por isso, reproduzimos abaixo o texto completo:
Sou um apaixonado pelo Jesus histórico e depois pelo Jesus da fé – Cristo. Mas quanto mais estudo e mais me embrenho nas pesquisas, mais questões se levantam. Uma delas diz mesmo respeito ao ser missionário. A pregunta que faço é se Jesus teve de facto alguma mensagem missionária. Será que o mandato missionário: «Ide por todo o mundo…» que se encontra no sinóticos, foi de facto um mandato de Jesus ou uma retroprojeção após a ressurreição. Esta dúvida surge-me pelo facto da existência do conflito entre Pedro e Paulo sobre os gentios. Se Pedro viveu com Jesus, e se Jesus teve alguma vez uma mensagem missionária, então não faz sentido que Pedro se opusesse aos gentios. Ainda bem que tivemos Paulo, porque somos no fundo herdeiros, por meio dele, da mensagem de Cristo. Paulo conseguiu ver e ler a mensagem para além de Pedro. Isto faz sentido?
Com certeza Jesus teve uma mensagem missionária. Não existe razão para pensar que as evidências dos evangelhos, que se deduzem de vários eventos na vida de Jesus, tenham nascido somente a posteriori, fruto da reflexão dos autores, depois que a mensagem cristã já tivesse ultrapassado os confins de Israel. É verdade que os evangelhos foram escritos cerca de 50 anos depois da morte de Cristo e que o cristianismo, nesse tempo, já tinha feito um percurso importante na difusão da Boa Nova, tendo inclusive chegado com Paulo e Pedro no centro do Império, em Roma, mas para os evangelistas era fundamental transmitir o pensamento de Jesus histórico, sem prescindir, como você sugere, do cristo da fé, a consciência criada na primeira comunidade cristã.
Um dos aspectos centrais que aparece na vida de Cristo é a sua capacidade de ultrapassar as fronteiras colocadas pela mentalidade da época, em geral, e em particular pela religião vivida por Jesus, o judaísmo. Mas é importante também ter consciência de que a difusão da mensagem divina às nações, aos gentios, não é algo que aparece apenas com o cristianismo. Os judeus têm consciência, embora conscientes da própria centralidade como povo eleito, sabiam que uma das tarefas que tinham é aquela de ser “luz das nações”, como se deduz de Isaías 42,6. Isso nos leva a relativizar um pouco a impressão geral que se tem que o judaísmo é uma religião exclusivista, em contraposição com a abertura universal do cristianismo.
Apesar da forte ênfase na eleição de Israel, seria um grave erro acreditar que a Torá ignora o restante da humanidade ou os exclui de sua visão de mundo e da Redenção. Os rabinos deixam isso muito claro em suas reflexões. É expressiva a passagem do Talmud que comenta a criação:
"Por que foi criado um só homem? Para propagar a paz entre as nações, ou seja, para que ninguém pudesse dizer aos outros: meus ancestrais eram maiores que os seus!" (Sanhedrin 37a).
O primeiro pacto de Deus é com toda a humanidade, como é evidente nos primeiros capítulos da Bíblia. A escolha de Israel como uma "nação separada" não é, portanto, para penalizar outros povos, mas para abençoá-los, trazendo-lhes benefícios, seja na já mencionada tarefa de ser ‘luz das nações’, mas também na missão de se apresentar como um exemplo de justiça aos olhos de todas as nações (Deuteronômio 4,6-9).
Os profetas entenderam muito bem essa missão universal, que será plenamente realizada na era messiânica, caracterizada pela disseminação do conhecimento de Deus por toda a Terra:
- "Muitos povos e nações poderosas virão buscar o Senhor dos Exércitos em Jerusalém e aplacar a face do Senhor" (Zacarias 8,22).
- "As nações caminharão em sua luz e os reis no esplendor de sua ascensão" (Isaías 60,3).
- "As nações saberão que eu sou o Senhor, que santifico Israel, quando o meu santuário estiver no meio delas para sempre" (Ezequiel 37,28).
Poderíamos citar ainda outros textos do Antigo Testamento que deixam transparecer claramente a universalidade da mensagem divina (veja 1Reis 8,41-43; Salmos 22,27; 67,1-4, os livros de Rute, Jonas). Existe inclusive, em certas passagens, a ideia de que Deus salvou outros povos (Amos 9,7; Isaías 19,20-21). E a terra foi dada em herança não somente a Israel, mas a todas as nações (Deuteronômio 32,8).
Esse breve resumo já basta para mostrar como no tempo de Jesus não existia uma visão de que a religião de Israel, que Ele seguiu, fosse exclusivista, discriminatória e até mesmo racista. Certamente não é assim segundo as palavras da Torá e dos profetas.
Isso não significa que no povo de Israel não houvesse resistência ao contato com os estrangeiros, resistência que se transmitiu também aos primeiros cristãos, vindos principalmente do judaísmo. O livro dos Atos dos Apóstolos, escrito por Lucas, procura mostrar como houve dentro da primeira comunidade um processo de conversão. Veja, por exemplo, Filipe que batiza o eunuco etíope (Atos 8,26-40) e a narração do encontro de Pedro com o centurião italiano Cornélio, contato em Atos 10.
A conclusão evidente, portanto, é que a vontade de levar a Boa-Nova de Cristo não deve ser atribuída exclusivamente a Paulo. Ele, sem dúvidas, recebeu essa vocação do próprio Cristo, para levar o seu nome até às “nações gentílicas” (Atos 9,15).