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As cartas do apóstolo Paulo são os mais antigos escritos cristãos existentes. Paulo permanece um autor maltratado, mal amado e mal conhecido entre os cristãos.

Legalista, misógino, anti-social, conservador... Essas acusações, normalmente, são feitas por pessoas que o conhecem muito mais por meio de lembranças de catecismo e de leituras litúrgicas, ouvidas distraidamente, do que por uma consulta freqüente a seus escritos.

Há uma evolução no pensamento de Paulo. De cartas simples, Paulo, vai, passo a passo, desenvolvendo seu jeito de escrever até se revelar como um grande escritor. O mundo Paulino possui um centro que permanece imutável: a ressurreição de Jesus. "Se Cristo não ressuscitou, vazia é o nosso anúncio e vazia também é a vossa fé"(1Cor 15,14).

O pensamento de Paulo é dinâmico e, ao mesmo tempo, contextual.

Por volta de meados do século XX, as convicções de que Atos dos Apóstolos constituíam a biografia mais segura da vida, ação e ensinamento de Paulo ruíram-se.

Criaram o Princípio de Knox que podemos resumir nos seguintes termos: os Atos podem ser utilizados para completar os dados das cartas, jamais para corrigi-los.

Corinto, a terceira cidade do império romano depois de Roma e Alexandria tinha cerca de 500 mil habitantes. Paulo, "o apóstolo dos gentios", chegou a Corinto no início da primavera de 50 d.C. durante sua segunda viagem missionária.

Paulo escreveu o maior número de cartas para a/s comunidade/s cristã/s de Corinto. O Segundo Testamento contém só duas cartas endereçadas à comunidade cristã de Corinto (1 e 2 Coríntios), mas estas mencionam outras duas, a primeira pré-canônica (1Cor 5,9 (1), carta perdida) e a Carta Dolorosa (ou "Severa"; 2Cor 2,4, carta perdida).

Paulo tinha à disposição várias fontes de informações sobre a Comunidade dos coríntios: os familiares de Cloé (1Cor 1,11), a carta enviada pelos coríntios (1Cor 7,1) e a delegação composta de Estéfanas, Fortunato e Acaico (1Cor 16,17).

Segundo Atos dos Apóstolos, Priscila e Áquila foram anfitriões de Paulo em Corinto (cf. At 18,2-3). Eram cristãos ex-escravos de origem judaica, que haviam fugido da Itália em 41 d.C. Como exilados político-religiosos, Priscila e Áquila, ao acolher o apóstolo Paulo, estavam também correndo o risco de reiniciar as perseguições já sentidas, na própria pele, lá em Roma.

À medida que a ação missionária de Paulo se irradiava, especialmente, entre os "tementes a Deus"(2), aumentava a ira dos judeus em relação a Paulo, o que tornava cada vez mais difícil anunciar o evangelho nas sinagogas.

Um conflito experimentado na comunidade de Corinto: os libertos, ex-escravos, mesmo tendo conquistado ascensão econômica se sentiam, em parte, discriminados, pelos livres, os cidadãos gregos. Logo, quando Paulo alerta para as discriminações que aconteciam na comunidade não está se referindo apenas a opressão econômica, mas a uma gama de diferenças culturais, históricas, religiosas, étnicas, patriarcais e antropológicas, que eram motivos de incompreensões e discriminações.

O Evangelho anunciado por Paulo se tornou atraente para essas pessoas que sentiam algum tipo de discriminação. Jesus Cristo personificava o paradoxo em que viviam. O cristianismo entendia a ambigüidade das pessoas discriminadas em Corinto e, ao mesmo tempo, apresentava-lhes um projeto de sociedade comprometida em reconhecê-las como pessoas, todas igualmente valiosas e dignas. Havia na comunidade cristã uma utopia que bradava "todos têm a mesma dignidade", ninguém pode ser discriminado.

"Não há entre vós nem muitos sábios aos olhos dos homens, nem muitos poderosos, nem muita gente de família distinta", pondera Paulo à comunidade cristã de Corinto. (Cf. 1Cor 1,26). Para compreender bem as divisões que são reprovadas por Paulo na comunidade de Corinto, discriminações trazidas à tona no momento da celebração da Ceia Eucarística (1Cor 11,17-34), não podemos nos apegar só às diferenças formais entre escravos, libertos, poderosos, sábios e influentes, pois os escravos domésticos eram bem melhor tratados que os escravos da zona rural, que eram cruelmente torturados por seus senhores. Os libertos, mesmo tendo conquistado ascensão econômica, traziam consigo mesmos as marcas da história pessoal de escravidão.

Conhecemos 16 membros da comunidade cristã de Corinto pelo nome. Dois deles (Priscila e Áquila) são marido e mulher. Duas mulheres (Priscila e Febe). Seis são explicitamente de origem judaica (Áquila, Crispo, Priscila, Sóstenes, Jasão e Sosípatro). Dois são, com certeza, de origem pagã (Erasto, Justo). Pela maioria dos problemas tratados na 1a Carta aos Coríntios percebemos que são oriundos da cultura gentílico-pagã. Enfim, o grupo predominante na/s comunidade/s cristã/s de Corinto era formado de pagãos de diversos graus do meio da escala social.

Lá havia diversas tendências de evangelização. Segundo At 18,24-28, o missionário Apolo veio de Éfeso para Corinto pouco depois da partida de Paulo para Jerusalém no fim do verão de 51 d.C. Ao dizer "eu plantei, Apolo regou"(1Cor 3,6), Paulo confirma, de modo explícito, que Apolo exerceu em Corinto uma ação missionária posterior à dele. Apolo falava com espírito cheio de fervor (At 18,25), era versado nas Escrituras (At 18,24) e tinha o dom da linguagem edificante (cf. 1Cor 1-4).

Além dos grupos pró Paulo e pró Apolo, havia também um terceiro grupo que proclamava adesão a Cefas (1Cor 1,12). Eram judeus convertidos que achavam difícil integrar-se em uma comunidade de predominância pagã.

"Eu sou de Paulo..."Essa fórmula, provavelmente, sugere que os que se entendem pertencentes a facções dentro da comunidade agem de forma infantilizada (cf. 1Cor 3,1-4) ou como escravos (1Cor 7,23). Talvez os ricos e mais bem educados eram partidários de Apolo e os de classe baixa preferiam o apóstolo Paulo.

As idéias filosóficas de Fílon faziam uma distinção entre homem celeste e homem terreno, o que gerava duas formas de encarar o corpo. Para os espiritualistas presentes na comunidade "o corpo é mau por natureza e traiçoeiro para a alma", visto que "o homem terreno era amante do corpo". Se o corpo é "um conspirador contra a alma, um cadáver é sempre uma coisa morta". Essa concepção levava os espirituais a negarem a ressurreição de Cristo (1Cor 15,12), pedra de toque do anúncio de Paulo.

A importância que alguns coríntios atribuíam à glossolalia (1Cor 12-14) inclui-se nesse padrão, quando reconhecemos que, para Fílon, a posse do espírito profético expressava-se em êxtase, loucura e frenesi inspirado, pois "a mente é desapossada à chegada do espírito divino". Paulo contesta fortemente a prática de orar em línguas. Aqui também o grupo dos espiritualistas é criticado.

No tocante aos dons, Paulo recorda que em primeiro lugar estão os apóstolos, entendido como enviado de Deus, missionários. Em segundo lugar estão os profetas, aqueles/as que ouvem os sussurros e cochichos de Deus nas entranhas da História. Em terceiro lugar, os mestres, os que ensinam a verdade que liberta. Paulo alerta: "Desejem os dons do Espírito, principalmente a profecia, pois quem profetiza fala às pessoas, é entendido, edifica, exorta e consola a comunidade. Aquele que profetiza é maior do que aquele que fala em línguas. Quem fala em línguas edifica somente a si mesmo, fala só a Deus"(cf. 1Cor 14,1-6).

"Ora, vós sois o corpo de Cristo, e sois os meus membros", alertava Paulo aos cristãos de Corinto. (cf. 1Cor 12,27). Paulo, ao chamar a comunidade de corpo de Cristo, identifica-a como a presença de Cristo no mundo. Cristo ressuscitou, prova disto é a existência da comunidade cristã.

Paulo achava perfeitamente natural que as mulheres fossem ministras da Igreja em igualdade de condições com os homens. O texto de 1Cor 11,11-12 é a primeira e única defesa explícita da completa igualdade das mulheres no Segundo Testamento. Diz assim: "Portanto, diante do Senhor, a mulher é inseparável do homem, e o homem da mulher. Pois, se a mulher foi tirada do homem, o homem nasce da mulher, e tudo vem de Deus".

A força e a clareza desse discernimento significam que a diretriz para as mulheres se calarem na igreja (1Cor 14,34-35) não foi escrita por Paulo. Foi acrescentada mais tardiamente para harmonizá-la com a passagem não-paulina de 1Tm 2,11-14.

A Ceia do Senhor, descrita em 1 Coríntios 11,17-34, era realizada em casas particulares. Não existia "a comunidade"de Corinto, mas havia "as comunidades"de Corinto, pois havia muitas: uma que se reunia na casa de fulano, outra que se reunia na casa de beltrano e assim por diante. No total, provavelmente, uma dezena de lugares diferentes.

Reunir algumas dezenas de pessoas na própria casa significava não poder juntá-las todas no mesmo cômodo. As casas dos ilustres eram construídas à moda romana. As acomodações davam para um pátio central, parcialmente coberto, o atrium, do qual, uma parte do espaço era ocupada por um recipiente destinado a colher as águas das chuvas.

Os costumes sociais e culturais dos coríntios não desapareceram do dia para a noite pelo fato de se terem convertido ao cristianismo. O proprietário da casa continuava a receber seus amigos cristãos na sala de jantar, ao passo que os demais, menos afortunados, se amontoavam no atrium.

Belo Horizonte, 01 de setembro de 2008.

Este texto é um resumo do artigo de nossa autoria "COMUNGAR É TORNAR-SE UM PERIGO: eucaristia à luz dos bastidores da 1a coríntios", publicado no livro Desafio da cidade grande aos Cristãos "“ A Primeira Carta aos Coríntios lida por cristãos do século XXI, Rogério Ignácio de Almeida Cunha (org.), CEBI, São Leopoldo, 2008, pp. 53-74.

1. "Eu vos escrevi em minha carta que não tivésseis relações com impudicos".
2. A expressão "temente a Deus" se refere a um gentio que simpatiza com a religião judaica, mas que não aceita a circuncisão e a conseqüente obrigação da Lei.