1. As fontes

As principais fontes cristãs para o fornecimento de dados a respeito do conflito entre o judaísmo formativo e o cristianismo no período pós-70 são os Evangelhos de Mateus e João, sendo eventualmente utilizado o Evangelho de Marcos. Trataremos aqui dos Evangelhos de João e Marcos, já que nos concentraremos no Evangelho de Mateus no próximo capítulo. Quanto às fontes judaicas, essas são os textos rabínicos, concebidos desde o período da destruição do Templo em 70 d.C.

O Evangelho de João

A tradição da Igreja Antiga localiza o Evangelho de João na cidade de Éfeso, na Ásia Menor. Porém, a análise do material do Evangelho, particularmente dos conflitos entre o grupo de Jesus e os judeus, revela que esse Evangelho tem uma origem palestinense.

Os indícios internos observáveis no Evangelho revelam que a Galiléia (J. T, Sanders, 1993), a Judéia (Brown, 1979) ou a Betanéia (Wegst, 1992) podem ser localidades indicadas para o texto, ou ao menos para a comunidade que emerge em seu conteúdo. O conflito relatado em João é intrajudaico, sendo o local de conflito a sinagoga, que termina por expulsar os que confessam a Jesus (Jo 9.22; 12.42; 16.2).

São outras evidências do conflito intrajudaico:

  1. as demandas entre os discípulos de Jesus e os discípulos de João Batista (Jo 3.25s; 4.1-3; 5.31-36; 10.40-42);
  2. as reações diferenciadas da população judaica a Jesus (Jo 7.10ss, 40-44);
  3. a indicação de cisma no povo judaico devido a Jesus (Jo 7.43, 10.19);
  4. as discussões em torno da importância de Jesus (Jo 7.12; 7.40ss);
  5. as menções ao "medo dos judeus", sentido por aqueles que aderiram a Jesus (Jo 9.22; 12.42; 19.38; 20.19). Além da exclusão da sinagoga, os que confessam a Cristo também estão sujeitos à perseguição (Jo 5.16; 15.20) e homicídio (Jo 16.2).
O Evangelho de Marcos

Ainda que seja provável que o Evangelho de Marcos manifeste conformidade com o contexto fronteiriço de Israel, particularmente a Síria, esse texto também reflete as demandas entre cristãos e judeus, bem como a radicalização do judaísmo pós-70.

A razão de indicar que Marcos não pertenceria a uma localidade da Judéia está na coexistência entre o grupo de Jesus e a sinagoga: em Marcos, Jesus e seu séquito freqüentam as sinagogas aos sábados (Mc 1.21, 39; 3.1; 6.2). O aspecto fundamental nessa constatação está no fato de que não é feita nenhuma crítica ou senão por parte de Marcos a esse respeito, muito menos qualquer indicação de que haveria expulsão dos cristãos da sinagoga.

Ao mesmo tempo em que afirma ser característico do movimento de Jesus a freqüência ao culto sinagogal, Marcos também destaca o caráter taumatúrgico do ministério jesuânico "“ revelando assim mais uma característica do judaísmo da Galiléia, que provavelmente foi adotada nas comunidades fronteiriças. Jesus, em Marcos, tem exousía (Mc 1.22,27; 2.10; 3.15; 11.28ss) e dýnameis (Mc 6.2,5).

Há também a referência nesse contexto à atuação de poderes malignos e ao exorcismo, e Jesus é apresentado como vitorioso diante de poderes satânicos (Mc 1.24).

Tais elementos elencados revelam o caráter desviante do cristianismo em relação ao moralismo e centralismo farisaico na instrução através da Torá. Sendo assim, percebe-se a impossibilidade de coexistência entre os dois movimentos, ao mesmo tempo em que se indica que, em locais distanciados do centro do judaísmo era possível algum convívio entre os grupos.

Fontes Judaicas

As fontes judaicas que podem ser utilizadas para elucidar o período são:

  1. a observação de Justino de que Bar Kochba ameaçou os judeus messiânicos caso não negassem que Jesus é o Cristo (Justino, Apologia I, 31). Tal observação mostra que havia judeus messiânicos até 132-135 d.C.;
  2. A 12ª Bênção da Oração das Dezoito Preces;
  3. Toseftá Hul 11.20-24, que restringe o contato dos judeus com hereges, entre os quais estão os judeus messiânicos;
  4. Shab 13.5, da Toseftá, que menciona que o relacionamento com os gentios é menos escandaloso que aquele feito com os hereges. Nesse texto, o rabi Tarfon afirma preferir se refugiar num templo pagão que na casa de um herege.
2. Os Conflitos

O Evangelho de Mateus foi formado em um ambiente judaico, cujas características são decisivamente afetadas pelas conseqüências da guerra judaica contra os romanos.

As conseqüências da guerra foram decisivas para a modificação do panorama político, social e econômico, o que redunda necessariamente em mudanças na religião judaica. A Judaea continuou a ser uma província romana, mas agora era base de uma legião romana, tendo como centro administrativo a Cesaréia marítima. Ainda assim, a terra de muitos judeus tornaram-se propriedade do césar, ficando os seus antigos donos como arrendatários (coloni).

Como conseqüência religiosa direta da guerra, a destruição do Templo acabou com a prática sacrificial e com os deveres religiosos (tributos, toque do shofar no Ano Novo, peregrinações ao Templo). O ofício sacerdotal tornou-se obsoleto, resultando numa modificação na estrutura hierárquica na religião judaica. Em lugar do imposto do Templo, os judeus ficaram obrigados a pagar o Fiscus Judaicus. O Sinédrio teve suas atividades tradicionais encerradas, já que sua sede no Templo foi destruída e seu poder político foi suprimido.

A sobrevivência do judaísmo se deu através de um movimento de renovação da vida religiosa, sob a liderança dos hachamim (sábios), conhecidos também pelo epíteto de rabinos. Eles mantiveram muitas tradições farisaicas, que tinham o poder de manter a dinâmica religiosa após a perda da autonomia política e da destruição do Templo. As bases dessa religiosidade eram:

  1.  o estudo da Torá;
  2. a aplicação da Torá ao cotidiano;
  3. a observância do sábado e do dízimo;
  4. a fé na ressurreição e no juízo;
  5. o culto sinagogal.
Com as reformas, esse judaísmo renovado escolheu Jabne (ou Jâmnia) como centro espiritual, local onde a tradição religiosa foi formulada e desenvolvida com a tolerância de Roma. A partir de Jabne, foi estabelecida a birkat ha-minim (a bênção dos hereges), a 12ª bênção da Oração das Dezoito Preces (shmone esre/amida). Tal prece indicava a diminuição drástica da tolerância com grupos sectários, entre os quais o formado por judeus-cristãos e saduceus.

12ª bênção da Oração das Dezoito Preces (Talmude Babilônico)

"Para os caluniadores, não haja esperança, e todos os que agem perversamente sejam destruídos num piscar de olhos, que em breve sejam todos exterminados. Os insolentes, arranca-os logo pela raiz, esmaga-os, faz com que caiam e os humilha já em nossos dias. Louvado sejas tu, Senhor, que despedaças os inimigos e humilhas os insolentes."

12ª bênção da Oração das Dezoito Preces (Talmude Palestinense)

"Para os caluniadores, porém, não haja esperança, e o governo perverso seja logo eliminado em nossos dias, e [os nozrim (nazarenos) e] os minim (hereges) sejam destruídos num piscar de olhos, e apagados do livro da vida e não sejam relacionados juntamente com os justos. Louvado sejas tu, Senhor, que humilhas os insolentes."

Segundo a opinião de exegetas como Maier (1982), Kuhn (1950), Schäfer (1975) e Stemberger (1977), o acréscimo dos cristãos (nazarenos) se deu por volta de 90 d.C., por inserção de Gamaliel II.

Esse judaísmo renovado recebe os nomes de:

  1. judaísmo rabínico;
  2. judaísmo clássico;
  3. e na teoria mais atual, judaísmo formativo.
A teoria do judaísmo formativo foi estabelecida por G. F. Moore na obra Judaism in the First Centuries of the Christian Era, de 1954. Ela foi retomada por J. Neusner na obra From Politics to Piety: The Emergence of Pharisaic Judaism, de 1979. A partir das pesquisas de Neusner, Andrew Overman reconstituiu o ambiente do judaísmo pós-guerra e as relações desse judaísmo com o Evangelho de Mateus na obra O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo: O Mundo Social da Comunidade de Mateus, publicada em inglês no ano de 1990.

O processo de radicalização e de uniformização do judaísmo foram importantes fatores para a integração entre grupos que adotaram essa vertente rabínica do judaísmo, ao mesmo tempo em que representou a exclusão de grupos que não o assumiram. Tal exclusão certamente não se deu com uniformidade, e nem através de uma to único, formal e universal. Mas a crise social e religiosa exigiu um endurecimento cada vez maior dos critérios de coesão e ortodoxia judaica.

Os cristãos da terra de Israel certamente não partilham do consenso adotado pelo judaísmo nesse período pós-70, o que explica em grande parte a separação entre os dois grupos. Sendo assim, os textos escritos a partir dessa época e lugar refletem os conflitos entre o judeu-cristianismo e o judaísmo rabínico. Logo, a descrição de Jesus e sua relação com o judaísmo nos Evangelhos de origem Palestinense, especialmente Mateus e João, refletem, em suma:

  • os conflitos existentes entre Jesus e os grupos judaicos atuantes na Galiléia e Judéia, ou seja: fariseus, escribas, saduceus, herodianos, zelotes;
  • os conflitos entre as comunidades judaico-cristãs e o judaísmo pós-70, particularmente representado pelos fariseus e doutores da lei(grammateîs).