Uma das coisas que nos chama a atenção nesta passagem, onde é citada a profetiza Ana, é a forma de oração que ela, desde que perdera o marido, impunha-se como forma de mortificação e penitência concomitante à adoração no Templo.

Nos tempos de João Batista, o termo cilício (do latim cilicium) significava uma túnica, cinto ou cordão que se trazia sobre a pele para mortificação ou penitência. Ele mesmo vestiu-se de pele de cabra, afastou-se ao deserto e jejuava. Em síntese, cilício significa tecido rude feito de pelo de cabra ou vestido de gente pobre. Em nossos dias, o termo ganhou conotação de mortificação voluntária ao lado do jejum e abstinência.

Segundo Lucas, Ana viveu até a idade de oitenta e quatro anos. Nunca abandonou o templo e adorava a Deus jejuando e orando dia e noite (cf. Lc 2, 37). Era uma vida totalmente dedicada a Deus semelhante às monjas e freiras do cristianismo mais tardio.

Consagrar-se a Deus é, na verdade, uma continuidade de práticas ascéticas que o homo religiosus desenvolve ao longo de sua relação com Deus. Cada um de nós é chamado, de acordo com nosso contexto, a sermos ofertas agradáveis ao Senhor.

Para uns, alguns tipos de mortificação e abstinência, principalmente as praticadas pelos padres do deserto e na Idade Média, podem, a princípio, parecer radicais demais, ao ponto de buscar o sofrimento como exigência de ordem moral, uma verdadeira renúncia de si mesmo. A outros, essa exigência pode se resumir a pequenos sacrifícios rotineiros, a exemplo de não comer determinado alimento por algum tempo, ou o exercício do silêncio, etc., mas que, de uma forma ou de outra, traz em nós as marcas do sacrifício de Cristo ou ainda, faz-nos aproximar mais do Divino.

O próprio Jesus deixou claro aos seus discípulos que para segui-lo na radicalidade do Reino era preciso, pois, algumas exigências: renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz "todos os dias"e segui-lo (cf. Lc 9, 23).

O profeta Simeão e a profetiza Ana puderam em vida ver o Senhor Jesus. Somente aos homens de oração é permitido conhecer os desígnios de Deus. Quem ora entra, enfim, em intimidade com Deus; é capaz de ver o que outros homens comuns não são. Entram na câmara de Deus através da adoração acompanhada de jejum e oração. Adorar a Deus é antes de tudo desfazer-se daquilo que é humano em nós e adentrar o mar imenso e mergulhar nas profundezas do Espírito Santo de Deus.

Àqueles que não conseguem essa intimidade com Deus ainda não fizeram a experiência com o Sagrado. Deus, em sua infinita bondade, revela-se ao homem quando este se desfaz dos trajes humanos no exercício da abstinência e da renúncia. Alguns, a exemplo de São Jerônimo, Santo Atanásio e João Damasceno, testemunhavam o uso do cilício em seu tempo. Uns, no mundo ocidental, no intuito de aliar um sacrifício pessoal ao sacrifício de Cristo na cruz; outros, no mundo oriental, a fim da busca da perfeição ou divinização da alma.

No mundo contemporâneo, cuja vida exige imediatismo e rapidez, tudo está pronto; basta servir-se. Aprendemos, desde cedo, a não lutar, a não se sacrificar, pois tudo está pronto como num self service. No reino de Deus, as coisas misteriosas revelam-se na contramão de tudo aquilo que aprendemos no tempo e espaço de um mundo cada vez mais veloz. No mundo conturbado, Deus não se revela no barulho, na agitação do dia-a-dia. Esses sinais são sinais externos de que o homem cada vez mais deixou de encontrar a Deus em seu interior e, de forma vulnerável, busca se preencher das coisas visíveis, do externo, do corruptível, das coisas materiais que passam. Somente aqueles que se dedicam a sua vida a Deus, na oração e jejum, não como uma imposição externa, mas como uma imposição voluntária, são capazes de ouvir a Deus e ver a Deus.

Simeão e Ana só puderam perceber que aquela criança era o prometido de Deus porque enxergaram com olhos da fé e não com os olhos humanos; eles não conseguem ver as maravilhas de Deus. Aqueles profetas eram capazes de, somente ao olhar ao menino, dar graças a Deus e falar a seu respeito como alguém que já O conhecia. Na verdade, ao homem comum não é dado conhecer os mistérios de Deus; Ele revela-se àqueles que, na intensidade da oração, buscam ser íntimos do Senhor, pois é preciso "orar e vigiai para que não caiam em tentação. O Espírito está pronto, mas a carne é fraca"(cf. Mt 26, 41). "A verdadeira fé é um comprometimento com a vida do espírito "“ o espírito que vive no corpo da pessoa, manifestando-se nos sentimentos e se exprimindo nos movimentos do corpo"(LOWEN, 1983, p. 140).

Em nossos dias, quais têm sido nossos exercícios espirituais, nossas mortificações, nossos jejuns e abstinências como formas de maior contato e intimidade com o Senhor? Nossa oração tem sido, a exemplo da fumaça do incenso, elevada a Deus? Somos capazes de, na adoração e na comunhão do corpo e sangue de Cristo, ver as suas maravilhas e ouvir a sua voz ou nos encontramos num deserto espiritual que, humanamente, limita nosso contato com Deus? A intimidade com Deus faz-nos homens sensíveis às coisas celestes e, por isso, somos capacitados pelo seu Santo Espírito a falar da realidade divina como quem tem conhecimento e autoridade como a profetiza Ana que "(...) deu graças a Deus e falava a respeito do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém"(Lc 2, 38b)?