Desde o Antigo Testamento, os curandeiros da tradição judaico-cristã eram considerados como profetas e, a fim de legitimar sua missão profética, realizavam curas e milagres no meio do povo. No tempo de Jesus, a cura consistia praticamente na expulsão do demônio, causador da doença, e no perdão dos pecados. A prática de expulsar demônios, adquirida pelos hebreus nos exílios da Babilônia e do Egito, era algo comum no judaísmo, pois se cria que as doenças eram causadas por eles, a exemplo da passagem de Mateus 12, 22-28. No versículo 28, Jesus, ao referir-se a si mesmo, assim se expressa: ”Mas, se é pelo Espírito de Deus que expulso os demônios, então chegou para vós o Reino de Deus”.
No contexto cultural de Jesus, a crença, para muitos, era de que havia entre Deus e Satanás um grande conflito espiritual. Anjos e demônios travavam batalhas celestes ao passo que justos e maus espíritos e injustos repercutiam a mesma batalha terrena. Segundo Schiavo,
A visão da história é sempre mais maniqueísta: Satanás ou Mastema pode ser adorado como um deus: ele já se tornou o principio matafísico do mal, chefe de uma espécie de reino, paralelo aquele de Deus, para o qual, Deus mesmo entrega como súditos, as almas dos gigantes, quer dizer dos espíritos malignos (SCHIAVO, 1985, p. 76).
Havia, em Jesus, na prática da cura das doenças, uma diferença fundamental. Um poder desigual capaz de atrair, até mesmo, algumas pessoas importantes (Jairo, chefe da sinagoga). Seu poder consistia, pois da ação poderosa do Espírito Santo, cujo poder fora dado aos apóstolos, antes e depois da sua morte, a fim de conferir-lhes poder “sobre os espíritos imundos” (Mc 6,7b). Os apóstolos ficaram impressionados, pois os demônios eram-lhes sujeitos: “expeliam numerosos demônios, ungiam com óleo a muitos enfermos e os curava” (Mc 6,13).
Em síntese, segue abaixo, uma lista das narrativas de milagres de Jesus nos quatro evangelhos dos autores Schiavo e Silva (2000, p. 125-6).
EXORCISMOS | Marcos | Mateus | Lucas | João |
O endemoninhado na sinagoga | 1,23-38 |
| 4,33-37 |
|
O endemoninhado geraseno (ou gadareno) | 5,1-20 | 8,28-34 | 8,26-39 |
|
A filha da mulher sirofenícia (ou Cananéia) | 7,24-30 | 15,14-21 |
|
|
O menino endemoninhado e seu pai | 9,14-29 | 17,14-21 | 9,37-43 |
|
O endemoninhado cego e surdo |
| 12,22 |
|
|
O endemoninhado mudo |
| 9,32-34 | 11,14-15 |
|
Curas | Marcos | Mateus | Lucas | João |
A sogra de Pedro | 1,29-31 | 8,14-15 | 4,38-39 |
|
O leproso | 1,40-45 | 8,2-4 | 5,12-16 |
|
O paralitico | 2,1-12 | 9,1-8 | 5,17-26 |
|
O homem com a mão atrofiada | 3,1-6 | 12,9-14 | 6,6-11 |
|
A filha de Jairo | 5,21-24,35-43 | 9,18,23-26 | 8,40-42,49-56 |
|
A mulher com hemorragia | 5,25-34 | 9,20-22 | 8,43-48 |
|
O surdo-gago | 7,31-36 |
|
|
|
O cego de Betsaida | 8,22-26 |
|
|
|
O cego Bartimeu | 10,46-52 | 20,29-34 | 18,35-43 |
|
O jovem de Naim |
|
| 7,11-17 |
|
A mulher encurvada |
|
| 13,10-17 |
|
Os dez leprosos |
|
| 17,11-19 |
|
O hidrópico |
|
| 14,1-6 |
|
O paralitico na piscina |
|
|
| 5,1-9 |
A ressurreição de Lázaro |
|
|
| 11 |
O cego de nascença |
|
|
| 9 |
O servo do centurião |
| 8,5-13 | 7,1-10 | 4,46-54 |
MILAGRES DA NATUREZA | Marcos | Mateus | Lucas | João |
A tempestade acalmada | 4,35-41 | 8,23-27 | 8,22-25 |
|
A alimentação dos 5 mil | 6,32-44 | 14,13-21 | 9,10-17 |
|
A alimentação dos 4 mil | 8,1-10 | 15,32-39 |
|
|
A caminhada sobre as águas | 6,45-52 | 14,22-33 |
| 6,16-21 |
A maldição da figueira | 11,12-14 | 21,18-22 |
|
|
A moeda da boca do peixe |
| 17,24-27 | 5,1-11 | 21,1-14 |
A pesca milagrosa |
|
| 5,1-11 | 21,1-14 |
A transformação da água em vinho |
|
|
| 2,1-11 |
Ao estabelecermos uma comparação entre o AT e o NT, percebemos diferenças fundamentais no cuidado com a saúde. No AT, há varias prescrições relacionadas à higiene e dietas para o povo da época, de forma que o milagre corresponde a determinado ensinamento e revestido de simbolismos anteriores. No NT, o enfoque maior fora dado a questão salvífica ou condenatória da pessoal. Um dado importante é que, na literatura novo-testamentária, Jesus dá o seu poder de curar os doentes aos seus apóstolos como condição fundamental para a evangelização (Mt 10,1 e Mc 16, 17-18). Dessa forma, percebemos a reprodução de certos ritos utilizados outrora pelas medicinas empírica e oficial. Esses ritos ao misturados ao conhecimento que antes fora acumulado e as atitudes médico-míticas, de maneira que
Os agentes da cura, principalmente os representantes da medicina empírica das sociedades que ainda não supriram as necessidades básicas dos seus cidadãos, procuram imitar os ensinamentos bíblicos com a imposição das mãos, a oração fervoroso e a declaração pública na criança do magistério de Jesus Cristo (BOTELHO, 1991, p. 92).
Nos Atos dos Apóstolos, há evidencias de numerosas curas e milagres realizados em nome de Jesus, visando sempre a dependência e a fidelidade do homem frente à divindade. Nos escritos de Paulo, especificamente a primeira carta aos Coríntios 12,1-11, ele dá ênfase aos carismas da cura e dos milagres como sinais do Espírito Santo. Mais tarde, a idéia de que os doentes eram instrumentos da salvação para aqueles que os ajudavam foi bastante difundida no ocidente, corroborando, definitivamente, ao ingresso da medicina no cristianismo de modo que
A essência salvífica personalizada do cristianismo acabou com o caráter amaldiçoado do antigo páthos e contribui para o enfraquecimento dos cuidados com a saúde publica fortalecendo a pratica médica cansativa ligava ao milagre. [...] Desse modo [...] os agentes da saúde cristãos (representantes da medicina oficial e da empírica) ficaram atados ao laço bíblico da caridade, ao mesmo tempo em que desprezaram as regras higiênico-sanitárias do AT e colocaram a salvação pessoal no reino de Deus como prioridade mais importante (BOTELHO, 1991, p. 94-5).
Em relação aos milagres dos santos cristãos, Woodward (2000) nos diz q eu a figura do santo, “na historia do cristianismo é, sobre muitos aspectos a história dos homens e mulheres que veneramos como santos” (2000, p. 137). São, na verdade, imagens sucessivas de Cristo que marcaram a história do cristianismo através dos séculos. Dessa forma, a história de milagres cristãos é a crônica de sinais e maravilhas realizados por aqueles que procuravam moldar suas vidas imitando cristo. Os milagres são, sem dúvidas, a forma mais concreta de imitação de Cristo.
Na visão de Botelho (1991),
Os milagres assumiram grande significado na legitimação do cristianismo, já que estavam contidos nas antigas promessas dos profetas. Assim, Jesus foi colocado como o maior de todos os taumaturgos. Qualquer que seja a interpretação teológica desses acontecimentos, eles continuaram estreitamente vinculados à vida e à morte, à saúde e a doença, fazendo com que fossem reforçadas as antigas relações, que faziam crer serem as doenças frutos do pecado (BOTELHO, 1991, p. 90).
Por isso, a maioria desses milagres, segundo o autor,
são curas de doenças porque a cura (tanto do corpo como da alma) era a marca de autenticidade do sacerdócio de Jesus.O exorcismo de demônios, tão estranho para a sensibilidade moderna, era a principal dessas curas porque, durante o primeiro milênio e até meados do cristianismo (e mesmo hoje em dia, em menor extensão), Cristo era visto como o adversário dos “principados e poderes” do mal, personificados por Satã e seus demônios (2000, p. 138).
A continuidade dos milagres de Jesus tem fundamento bíblico na narrativa do cânone do Novo Testamento a partir da descida do Espírito Santo sob os seguidores de Cristo, a fim de garantir a esses as habilidades da pregação e realização de milagres em nome do mestre. Assim, nos Atos dos Apóstolos, é que numerosos milagres são registrados, dando seqüência ao desenvolvimento da fé e da Igreja Cristã. Análogos aos milagres de Cristos são os milagres do Moises, Elias e Eliseu da mesma forma que os milagres descritos nos Atos dos Apóstolos são semelhantemente parecidos com os de Cristo.
Todavia, ao realizar milagres, os apóstolos fazem em nome de Jesus, a exemplo do primeiro milagre nos Atos dos Apóstolos.
Mas Pedro lhe disse “nem ouro nem prata possuo. O que tenho, porém, isto te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareu, põe-te a caminhar! E tomando-o pela mão direita, ergueu-o. No mesmo instante seus pés e calcanhares se firmaram, de um salto pôs-se em pé e começou a andar. E entrou com eles no Templo, andando, saltando e louvando a Deus (At 3, 1-10).
Diante da realização do milagre, a reação da pessoa curada, de acordo com nossa observação no MRCC, é louvar a Deus, e todos aqueles que testemunham ficam admirados. A partir de um olhar mais atento da narração de Lucas, percebemos que as curas atribuídas a Pedro, seus discípulos e Paulo, assemelhavam-se à magia. A exemplo disso, o autor cita-nos:
... a ponto de levarem os doentes até para as ruas, colocando-os sobre leitos e em macas, para que, ao passar Pedro, ao menos sua sombra encobrisse algum deles ”(Atos, 5,14-16). “E ainda,”...pelas mãos de Paulo, Deus operava milagres não comuns.Bastava, por exemplo que sobre os enfermos se aplicassem lenços e aventais que houvesses tocado seu corpo:afastavam-se deles as doenças e os espíritos maus saiam (At 19, 11-12).
Em suma, havia outros curandeiros à época, que também realizavam curas, exorcismos, etc., embora não fossem cristãos. Por essa razão, Lucas buscou, pois, em Atos dos Apóstolos distinguir os milagres produzidos em nome de Jesus da mágica realizada pelos concorrentes. Todavia,
Os milagres de cura e de exorcismos com cura no NT, descritos pelos quatros apóstolos [...] assumiram, realmente, um aspecto impressionante na escatologia cristã, envolvendo simbolismo que fizeram parte do cotidiano do homem milhares de anos antes do cristianismo” (BOTELHO, 1991, p. 90).
Ao comentar sobre os milagres dos primeiros mártires cristãos, Woodward (2000) faz menção ao número muito grande de cristãos martirizados em conseqüência de sua fé durante os primeiro três séculos da era crista foi certamente apenas uma fração dos milhões condenados à morte na Europa e na União Soviética do século XX, sob os regimes nazistas e comunistas. Nos rituais litúrgicos das missas católica e ortodoxa, predominou, por essa razão a recordação do sofrimento e da morte, a exemplo da paixão e morte dos membros do corpo de Cristo que, segundo o cristianismo católico morrem, novamente, nos sofrimentos dos santos.
Na antiguidade,
As conquistas sociais que a medicina já tinha incorporado [...] pela herança grega, dessagrando a doença, e pelos registros do AT e Talmude, recomendando cuidados com a saúde publica [...] entram em choque com os interesses da Igreja voltados para a salvação individual noutro mundo e da pratica baseada essencialmente na caridade cristã e na salvação personalizada (BOTELHO, 1991, p. 99).
Para o cristianismo dos primeiros séculos, na “vocação do asceta havia o imperativo de viver em silencio, solidão e abnegação” (WOODWARD, 2000, p. 152). A partir dessas três práticas, buscava-se uma perfeita harmonia e equilíbrio com o criador perdidos na queda de Adão e Eva. Para a escola de Alexandria, era uma reabsorção em Deus como a derradeira fonte de seu ser. Entre os eremitas sírios, por exemplo, a automortificação tinha o objetivo de elevar o corpo e a alma e não simplesmente atingir a perfeição dos anjos.
As práticas ascéticas ou as penitencias cristãs a exemplo da clausura ou até mesmo o exercício de nunca deixar de dar esmola quem pede, são, sobretudo, imposições que o homo religiosus impõem a si mesmo. Woodward comenta que o “corpo era importantíssimo para os ascetas também. Ao purificá-lo por meio de uma vida de oração e pelo lento martírio da carne (...) o corpo receberia na terra uma porção do corpo espiritual que assumira na ressurreição dos justos” (WOODWARD, 2000, p. 161). Desse modo, no contexto medieval, os milagres pertenciam àqueles que viviam distanciados do mundo e podiam, em vida e depois da morte, ser agraciados pela presença do Sagrado no corpo humano.
No começo da Idade Média, na vida espiritual da Igreja, é marcado, de modo especial, pelo milagre e virtude dos santos. Segundo o autor, esta época é considerada, sob a ótica do terceiro milênio, com a “idade dos milagres” porque eles “são resultados da santidade – um premio, quase,para vidas de virtude excepcional” (WOODWRD, 2000, p. 159). O autor cita Benedicta Ward que afirma que
os milagres dos santos eram simplesmente a vida comum do céu tornada manifesta nos assuntos cotidianos, frestas nas barreiras entre o céu e a terra, uma situação na qual a falta de milagres era motivo de surpresa, terror e consternação” (Ibidem, 2000, p. 159).
O processo de sacralização do corpo está, intimamente, implicado com o modelo de vida de Jesus ou com as práticas ascéticas ou devocionais que o ser religioso (santo), em vida, desenvolveu. Os instrumentos das praticas ascéticas faz com que o ser carismático, após a sua morte, ser aclamado pela população como santo. De fato, o estilo de vida (imitação de Cristo) desse homo religiosus, seja ele pertencente à hierarquia eclesiástica ou ao meio popular (leigo) vai determinar o grau maior ou menor de santidade atribuída pelos fieis. Quanto maior a fé no Sant maior é a possibilidade de se adquirir o milagre.
Em vida, a sensibilidade à presença de Deus ou dos carismas de cura e de libertação dos males físicos e espirituais são, certamente, uma forma de imitação de Jesus, comparada aos textos bíblicos, às curas e aos milagres dos evangelhos. O extraordinário faz com que o ser religioso, “Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, [...] acredit[e] sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e tornando-o real” (ELIADE, 2001, p. 164).
No catolicismo, há uma ligação que se estabelece entre o corpo do santo como o lócus miraculorum, isto é, o lugar onde habita o Sagrado como lugar do próprio Milagre par excellence, ou suja, lugar ou templum onde o Sagrado se manifesta, mas de onde também emanam outros milagres, conforme a imaginação cristã.
As relíquias dos santos ou seus próprios corpos sempre foram para os cristãos objetos sagrados capazes de produzir milagres. Por exemplo, na Didascalia of the apostles, por exemplo, texto siríaco do século IV, percebe-se que era costume dos primeiros cristãos conservarem “os corpos e ossos dos mártires (algumas vezes correndo grande risco) e venerarem como relíquias sagradas” (WOODWARD, 2000, p. 160) porque sabiam, de acordo com sua fé, que eles viveriam novamente. Aliás, foram nas catacumbas e, em tempos futuros, nas igrejas primitivas, que se celebravam as missas (eucaristia), associando a memória dos santos (mártires) à memória do Cristo no milagre do Pão e do Vinho como imitação do Salvador e forma de vitoria sobre o tumulo.
No século XII, houve o advento das universidades medievais e a Igreja, na tentativa de conquistar a credibilidade às pessoas desfavorecidas, formou médicos como agentes oficiais da saúde contra os curandeiros populares, fazendo reacender o antigo conflito de competência porque aqueles descreviam os agentes da medicina empírica (benzedores, parteiras, comadres, padres e sangradores) como os demônios e muitos foram condenados pelos tribunais inquisidores por conta desse conflito.
Conforme nos ilustra Botelho (1991),
A resistência por parte dos médicos formados nas escolas de medicina acabou gerando, como resposta, uma melhor organização dos cirurgiões-barbeiros. Sob a liderança inicial de São Cosme e São Damião, e passaram a adotar atitudes e roupas para diferenciá-los dos barbeiros (p. 102).
A partir do séculos XI, a união entre Igreja e sociedade laica buscou suprir as grandes deficiências na atenção à saúde e funcionou como mecanismo diminuidor das tensões sociais resultantes da fome, miséria e das doenças endêmicas.
Neste contexto, surgem as romarias ou caminhadas aos locais santos. Atualmente, as caminhadas aos locais santos, a exemplo dos grandes santuários, continuam acontecendo porque os fiéis, vítimas de doenças crônico-degenerativas, procuram pela cura messiânica, isto é, pela cura milagrosa quando, durante anos vivem sem solução medica e sofrem o sentimento de desamparo por parte dos seus familiares. Em comparação ao câncer e a AIDS modernos. “A lepra, um dos flagelos que assolava o homem medieval, não distinguia ricos e pobres, poderosos e despossuídos. A desfiguração final da doença repugnava o doente e a família, não só pelo aspecto grotesco da deformidade, como também pelo medo de contrair a enfermidade” (p. 104).