Mário, essa sua "perturbação" é muito importante. Primeiro de tudo revela a todos nós que a Bíblia não é um livro simples e, depois, que não podemos nos colocar diante dela como se fosse um livro qualquer.
Sem dúvida uma leitura bem feita da Bíblia precisa de estudo. Mas nada impede que alguém que não tenha estudado assuntos inerentes a ela possa ler a Palavra de Deus.
Há vários estilos de textos na Bíblia. Por exemplo, se você lê os livros históricos (Samuel, Reis, Crônicas...) encontra sobretudo informações históricas do povo de Deus, que viveu antes de Cristo. São histórias de personagens, narrações de episódios, etc. Tem muita mensagem de revelação por trás delas, mas essencialmente é história. Invés, se você abre, por exemplo, o livro de Jonas, sempre no Antigo Testamento, não tem nada de história. Não aconteceu que um homem foi engolido por um peixe e ficou 3 dias lá dentro... Pra entender isso é preciso de estudo, pois caso contrário podemos acabar lendo de modo errôneo. Não é necessário, nesse caso, de um curso bíblico, mas já bastaria ler a introdução ao livro, normalmente presente nas boas edições da Bíblia.
Em relação ao Novo Testamento, aos livros a partir de Mateus, que cronologicamente, nasceram depois da vinda de Cristo, se repete a mesma situação. Nos Evangelhos, por exemplo, há vários episódios da vida de Cristo. Cada um deles, dependendo do autor do Evangelho, há uma mensagem, além do fato histórico em si. Um leitor, digamos amador, pode tirar a sua conclusão, aplicá-lo a sua vida, sem problemas. Contudo, se tem por trás uma boa formação, essa mensagem pode ser mais autêntica, mais eficaz e, quem sabe, livre de fundamentalismos.
Tomamos um exemplo de Mateus 15, a cura da filha de uma mulher da cananéia (versívulos 21-28). Jesus foi para a região de Tiro e de Sidônia e ali encontrou uma mulher que lhe pedia piedade para sua filha que estava doente. Parece que Jesus não quer atender a mulher dizendo inclusive duas frases que poderíamos julgar grosseiras: "Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel" e "Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos". Se não procuramos informações fora do texto, perdemos alguma coisa da mensagem dessa passagem. De fato Tiro e Sidônia ficam fora de Israel, na região do Líbano, e uma mulher cananéia era considerada pagã; com eles os judeus não queriam ter contato. E Jesus era um judeu! Tendo essa visão do contexto, conseguiremos perceber que existe em Jesus uma influência do pensamento judeu da época e a força dessa mulher corajosa e cheia de fé recebe nova luz. Poderíamos inclusive ver uma certa "conversão" de Jesus, graças à fé desta mulher. A conclusão é que a mensagem de Cristo não se limita ao povo judeu, mas vai além das fronteiras de Israel.
Como este há tantos outros exemplos na Bíblia. Basta pensarmos, por exemplo, nas tanta leituras absurdas e erradas feitas do Apocalipse. Há muita simbologia nesse livro e, sem estudo, é provável que muita coisa seja interpretada de modo errôneo.
Nós cristãos não devemos viver apenas na inércia da nossa educação, seja familiar que eclesial. Há muitos pastores e padres que necessariamente não estão corretos em suas interpretações da Palavra de Deus. É necessário formação. Hoje não podemos usar como desculpa a dificuldade de acesso a materiais de estudo. Com discernimento, na internet existem muitos recursos. Além disso, nas paróquias e comunidades, é preciso precionar os nossos líderes para que ofereçam cursos de atualização, sobretudo na área da Bíblia.
Ninguém precisa necessariamente fazer um curso para ler a Bíblia, mas uma leitura responsável desse livro supõe formação. Temos que ter uma fé que procura entender!