Estudo de Mateus 23,1-12

 

Tem um texto, no Novo Testamento, que, de maneira exemplar, mostra uma das tarefas primárias pedidas aos discípulos de Jesus, que devem praticar diante de cada situação em que se encontrem, ou seja, 1Tessalonicenses 5,21. Nesta passagem Paulo admoesta a examinar, colocar à prova e medir tudo para conservar o que é bom e abster-se de todo tipo de mal. É a atitude madura que, seguindo o Espírito de Cristo, é necessária para poder analisar e saber comportar-se diante dos eventos da história.

No texto de Mateus, que tomamos em consideração, temos um exemplo concreto onde Jesus nos ensina a nos armar dos instrumentos necessários para praticar esse exercício, em relação à autoridade. Trata-se de uma passagem cuja interpretação criou incompreensões que afetaram negativamente a relação com os irmãos judeus.

 

Leiamos o texto de Mateus 23:

1 Jesus falou às multidões e aos seus discípulos: 2 «Os doutores da Lei e os fariseus têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés. 3 Por isso, vocês devem fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imitem suas ações, pois eles falam e não praticam. 4 Amarram pesados fardos e os colocam no ombro dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo. 5 Fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos outros. Vejam como eles usam faixas largas na testa e nos braços, e como põem na roupa longas franjas, com trechos da Escritura. 6 Gostam dos lugares de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas; 7 gostam de ser cumprimentados nas praças públicas, e de que as pessoas os chamem mestre. 8 Quanto a vocês, nunca se deixem chamar mestre, pois um só é o Mestre de vocês, e todos vocês são irmãos. 9 Na terra, não chamem a ninguém Pai, pois um só é o Pai de vocês, aquele que está no céu. 10 Não deixem que os outros chamem vocês líderes, pois um só é o Líder de vocês: o Messias. 11 Pelo contrário, o maior de vocês deve ser aquele que serve a vocês. 12 Quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado.»

 

Se não quisermos cair na armadilha de uma simples leitura anti-judaica do texto, precisamos ter presentes dois elementos.

Em primeiro lugar, a linguagem dura de Jesus sublinha a índole tipicamente profética do texto. Exemplos símiles encontramos, por exemplo, em textos como Isaías ou Amós, ricos de oráculos sérios e duros contra o povo de Israel:

Ai dos que juntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço disponível, até serem eles o únicos moradores da terra. Iahweh dos Exércitos jurou aos meus ouvidos: certamente muitas casasa serão reduzidas a ruína, grandes e belas, não haverá quem nelas habite... Ai dos que madrugam cedo para correr atrás de bebidas fortes, e à tarde se demoram até que o vinho os aqueça... Eis por que o meu povo foi exilado: por falta de conhecimento; seus ilustres são homens famintos! Seus plebeus estão mortos de sede!” (Isaías 5,8-13).

Ouvi esta palavra que Iahweh falou contra vós, israelitas, contra toda a família que eu fiz subir da terra do Egito: Só a vós eu conheci de todas as famílias da terra, por isso eu vos catigarei por todas as vossas faltas. (...) Proclamai nos palácios de Azoto e nos palácios da terra do Egito; dizei: reuni-vos nas montanhas da Samaria, e vede as numerosas desordens em seu seio, as vilências em seu meio! Não sabem agir com retidão,  - oráculo de Iahweh – aqueles que amontoam opressão e rapina em seus palácios. Por isso asim falou o Senhor Iahweh: Um inimigo cercará a terra, arrancará de ti o teu poder, e os teus palácios serão saqueados” (Amós3,1-2.9-11).

 

O segundo elementoque precisamos ter presente, para evitar uma semplificação da leitura, é que nos encontramos diante de uma disputa, uma polêmica, um estilo retórico chamado ‘polemikos’ (em grego este vocábulo significa ‘inerente à guerra’), contraposto à apologética, através do qual se confrontam duas posições adversárias. Formalmente se expressa por meio de uma linguagem (é sempre um confronto meramente verbal) que, culturalmente, não é mais presente no nosso meio (hoje, não podemos nos eximir do ‘politically correct’), mas era comum na época de Jesus, para argumentar contra um adversário. Em seguida, esse estilo literário foi usado também pela tradição cristã antiga, em um ambiente em que aumentava a distância doutrinal entre cristãos e judeus e, por isso, também a necessidade de afirmar as próprias convicções.

 

Considerando isso, a disputa profética de Jesus contra os escribas e fariseus tem a mesma potência e também a mesma perspectiva dos profetas antigos, que não enfrentavam o povo eleito e os seus chefes por que são judeus, mas por que eram julgados responsáveis da injustiça e do mal, para exortá-los à conversão, à mudança radical de comportamento.

 

No texto de Mateus, Jesus se dirige “às multidões e a seus discípulos”, ou seja, a todos, sem distinção, que devem escutar e observar as leis. E é interessante notar como as multidões e discípulos sejam colocados uns ao lado dos outros: eles condividem a responsabilidade de responder diante das leis e das autoridades, seja como fiéis que como cidadãos.

 

A todos Jesus indica a atitude correta diante daqueles que estão “sentados na cátedra”, que ensinam, que tem uma cultura elevada e a quem são reconhecidos o papel e a autoridade de interpretar a Lei de Moisés. Por “Lei de Moisés” se intende não somente os 10 mandamentos, as tábuas das “10 palavras”; a tradição judaica ensina que todo o Pentateuco, a Torá, os primeiros 5 livros da Bíblia, são ensinamentos de Moisés, ou seja, toda a interpretação do decálogo e dos preceitos que o Senhor deu a Moisés sobre o Sinai, a parte escrita e a parte oral, que, de acordo com essa tradição, o Senhor sussurrou no ouvido de Moisés. Escribas e fariseus, isto é, as autoridades do povo, interpretam e ensinam como entender e atualizar, como colocar em prática os preceitos divinos dados a Moisés, nas várias situações concretas da vida atual do povo.

 

Nos textos dos evangelhos, como em modo particular no Evangelho de Mateus, encontramos frequentemente esses personagens, que junto a outras categorias de pessoas como os doutores da Lei, os sacerdotes, os saduceus, muitas vezes interrogam Jesus sobre questões como a legitimidade de repudiar a esposa (Mateus 19,1seguintes) ou de manifestar a própria insatisfação em relação à autoridade civil não pagando as taxas (22,15ss), sobre a verdade a respeito da ressurreição dos corpos depois da morte (22,23ss), sobre qual mandamento é o maior (22,34ss). Esse é um método muito comum entre os rabinos, que sempre compartilham as próprias opiniões sobre vários aspectos da Torá.

 

Em relação às palavras ensinadas por Jesus, ele diz para “fazer e escutar” aquilo que dizem. Essa frase ecoa Êxodo 19,8, onde se fala do dom da Lei e o povo de Israel responde a Moisés: “Aquilo que o Senhor disse, nós o faremos e guardaremos”. Transparece uma linha contínua entre as palavras dadas por Deus a Moisés no Sinai e o ensinamento dos escribas e fariseus, que Jesus reconhece plenamente. Ele não diz para não escutar, mas, ao contrário, declara que aquilo que as autoridades ensinam é para ser escutado. Jesus não pretende nessa passagem a fazer polêmica nem contra a existência da autoridade (cuja origem divina, na época, não era discutida), nem contra as leis em si. O que interessa a Jesus é que o seu público tenha critérios para reconhecer a existência de crédito, de coerência de quem exerce a autoridade. Crédito e autoridade são duas coisas distintas. O ensinamento e a lei têm em si crédito e devem ser seguidos, colocados em prática e observados (nessa passagem é usado o verbo ‘terein’, que significa cuidar, conservar no coração).

 

Invés, as obras da autoridade que proclama o ensinamento não devem necessariamente serem seguidas. A autoridade não pode se tornar modelo de vida quando é incoerente, quando as suas ações são incogruentes e revelam falta de observância da lei e daquilo que é ensinado. Por isso, para o seguidor de Cristo, o fato que uma autoridade se comporte em modo incoerente não permite que ele siga, condivida, exalte e apoie a atitude errada de tais personagens.

 

Em poucas palavras, Jesus sublinha a atitude característica e presente em toda a humanidade, seja que se trata de autoridade religiosa, seja que se trate de autoridade civil. O primeiro sinal que indica a atitude incoerente contra a qual Jesus nos alerta é que “Amarram pesados fardos e os colocam no ombro dos outros”, aconselham a fazer coisas impossíveis porque a eles falta a experiência de se encontrarem na situação de quem tem que carregar o peso, na maioria das vezes estão longe da realidade que pretendem regular e não têm idéia da vida concreta daqueles que querem guiar. E mais: quando pedem ao povo algo difícil, não são solidários com ele. Isso aconteceria somente se condividissem o mesmo sacrifício e a mesma dificuldade. Ao contrário, esse tipo de autoridade fica sempre ligada aos próprios previlégios.

 

Outro sinal que demonstra falta de crédito, de coerência, é o fato de ostentar a religião e as obras de piedade, usadas para a própria glória. Os ‘filactérios’ e ‘franjas’ são sinais religiosos de grande importância para os judeus. Os filactérios são citados em Êxodos 13,9 e Deuterônomio 6,8: são pequenos contenidores de couro com dentro rolos de papel pergaminho com os textos da Lei e são amarrados na testa e no pulso esquerdo durante as orações. As ‘franjas’, cujo nome é ‘zizit’, são citadas em Deuteronômio 22,12 e Números 15,38. São franjas colocadas na parte inferior das vestes usadas para a oração. Ambos os objetos têm a função de recordar os preceitos do Senhor e de convidar a quem os usa de colocar a Lei do Senhor em prática. Jesus, invés, lembra como podem significar um uso impróprio da religião, da devoção e das obras boas e mostra toda a incoerência daqueles que são os primeiros a lembrar a necessidade de colocar em prática a Lei do Senhor, mas que, na verdade, vivem a própria autoridade diante de uma assembleia como se fossem atores, como se a sua função fosse recitar um papel. Quando Jesus, um pouco mais adiante, chama essas pessoas de “hipócritas”, quer exatamente enquadrá-las dentro de um contexto teatral. Na cultura grega da época, o “hypocrites” é exatamente um ator, que realiza a própria profissão para receber aplausos. Promovem a si mesmos, querem sentir-se chamar com os mais elevados títulos, como se eles (pai, mestre, guia) fossem apenas sinal de prestígio, mas a própria função não comportassem a responsabilidade de comportar-se como um pai, um mestre, uma guia.

 

Todavia, àqueles que Jesus está ensinando (“a vocês, invés...”), pede para relativizar, para não idolatrar as funções mais elevadas. Os elogios não podem ser pretendidos ou procurados e nem mesmo serem feitos; diante de um pedido ou desejo de reverência cabe um rejeito com dignidade do ser servo, pois é necessário ter consciência que a autoridade, a paternidade humana e toda função de ensinamento ou guia devem ser espelho daquelas divinas e comportam  o seu peso e a sua responsabilidade.

 

A exaltação e a gratificação são espectativas naturais e refletem o desejo natural de ser reconhecido e amado. Todavia o problema é por quem se deseja ser exaltado e a que preço. Jesus ensina, com palavras e fatos, que o caminho justo para alguém que exerce a autoridade é aquele do serviço. Conhecimento da vida comum, coerência e serviço é o sinal de crédito de toda autoridade. Por outro lado, o modo justo de comportar-se  de um filho, de um discípulo ou de um cidadão é o da observância, com respeito e consciência, sem ser servil.

 

Por fim, a experiência demonstra que se existe autoridade sem crédito, existe também crédito independentemente da autoridade. É necessário aprender a reconhecer também essa, pois normalmente é a responsabilidade dos profetas, daqueles que – com liberdade e consciência, em todos os âmbitos da vida humana e sem alguma autoridade conferida – falam com sinceridade, dizem coisas que pertubam, realizam gestos inovadores e, muitas vezes, inconprensíveis. Diante dessa coerência e da disponibilidade em pagar em primeira pessoa, é necessário prestar a justa atenção.