O "GO'EL"
Os membros da família em sentido amplo devem uns aos outros ajuda e proteção. A prática particular desse dever é regulada por uma instituição da qual se encontram formas análogas em outros povos, por exemplo, entre os árabes, mas que, em Israel, toma uma forma particular, com um vocabulário especial. É a instituição do go 'el, palavra procedente de uma raiz que significa "resgatar, reivindicar", e, mais fundamentalmente, "proteger".
A obrigação mais grave do go 'el israelita é a de assegurar a vingança de sangue, na qual se descobre uma lei do deserto. O sangue de um parente deve ser vingado mediante a morte do que o derramou ou, na falta desse, com a morte de alguém de sua família; no interior do grupo não há lugar para a vingança de sangue, mas para o castigo ou expulsão do culpado. Os árabes dizem: "Nosso sangue foi derramado." Esse dever pesava primitivamente sobre todos os membros da tribo, e sua extensão permitia determinar os limites do grupo tribal.
A mesma lei existia em Israel. No canto de Lameque, Gn 4.23, 24, ela é expressa com selvagem violência:
Matei um homem porque ele me feriu,
e um rapaz porque me pisou.
Sete vezes se tomará vingança de Caim;
de Lameque, porém, setenta vezes sete.
Lameque é o descendente de Caim, que foi condenado a viver no deserto. E Caim leva um "sinal", que não é um estigma de condenação, mas uma mar¬ca que lhe designa como pertencente a um grupo no qual a vingança de sangue é praticada de forma impiedosa. Essa história, Gn 4.13-16, explica, sem dúvida, a motivação social da instituição. Não se trata só de procurar uma compen¬sação, "homem por homem, mulher por mulher", como dirá o Alcorão, mas é uma proteção: em uma sociedade não centralizada, a perspectiva da dívida de sangue que será preciso pagar, é um freio que contém os indivíduos e o grupo.
O costume se manteve depois que os israelitas se tornaram sedentários. Assim, Joabe mata Abner, n Sm 3.22-27,30, para vingar a morte de seu irmão Asael, 2Sm 2.22, 23. Contudo, a legislação procurou atenuar essa vingança mediante o exercício de uma justiça pública. A legislação acerca das cidades de refúgio, Nm 35.9-34; Dt 19.1-13, sanciona a vingança de sangue mas a controla exigindo de antemão um juízo sobre a culpabilidade do assassino e excluindo o caso de homicídio involuntário4. Só que, contrariamente ao direi¬to beduíno, a legislação israelita não aceita a compensação em dinheiro, invo¬cando para isto um motivo religioso: o sangue derramado profanou o país em que habita Iahvé e deve ser expiado pelo sangue do mesmo que o derramou, Nm 35.31-34.
Já dissemos que a lei da vingança de sangue não é praticada dentro do mesmo grupo. Só um caso parece constituir uma exceção, II Sm 14.4-11: para conseguir a revocação de Absalão, exilado depois do assassinato de Amnom, a mulher de Tecoa inventa que um de seus filhos foi morto por seu irmão e que os membros do clã querem matá-lo; a mulher pede a Davi que intervenha para que o "vingador de sangue" não mate seu filho. Mas a decisão dos membros do clã é normal se for entendida como castigo do culpado, como também era normal o Exílio de Absalão: trata-se da exclusão do culpado. Só é anormal o termo "vingador de sangue" do v. 11, e é possível que nessa passagem não tenha sido empregado com propriedade.
O go 'el é um redentor, um defensor, um protetor dos interesses do indivíduo e do grupo. Ele intervém em certo número de casos.
Se um israelita precisou se vender como escravo para pagar uma dívida, deverá ser resgatado por um de seus parentes próximos, Lv 25.47-49.
Quando um israelita precisa vender seu patrimônio, o go 'el tem direito preferencial na compra, pois é muito importante evitar a alienação dos bens da família. A lei está codificada em Lv 25.25. É como go'el que Jeremias adquire o campo de seu primo Hanameel, Jr 32.6s.
O costume é ilustrado também na história de Rute, mesmo que aí a compra da terra se complique por um caso de levirato. Noemi tem uma posse que a pobreza a obriga a vender; sua nora Rute é viúva e sem filhos. Boaz é um go'el de Noemi e de Rute, Rt 2.20; mas há um parente mais próximo que pode exercer o direito de go'el antes que Boaz, Rt 3.12; 4.4. Esse primeiro go'el estaria disposto a comprar a terra, mas não aceita a dupla obrigação de comprar a terra e casar com Rute, pois o filho que nascesse dessa união levaria o nome do defunto e herdaria a terra, Rt 4.4-6. Boaz adquire então a posse da família e se casa com Rute, Rt 4.9,10.
O relato mostra que o direito do go 'el era exercido segundo certa ordem de parentesco; esta é detalhada em Lv 25.49: primeiro o tio paterno, depois o filho deste, finalmente os outros parentes. Além disso, o go'el pode, sem ser por isto censurado, renunciar a seu direito ou fugir de seu dever: o ato de descalçar-se, Rt 4.7,8, significa o abandono de um direito, como o gesto análogo na lei do levirato, Dt 25.9. Contudo, nesse último caso, o procedimento tem um caráter infamante. A comparação dessa lei com a história de Rute parece indicar que a obrigação do levirato era assumida, no início, pelo clã, assim como o resgate do património, e que foi mais tarde restrito ao cunhado.
O termo go 'el passou à linguagem religiosa. Assim, Iahvé, vingador dos oprimidos e salvador de seu povo, é chamado go'el em Jó 19.25; SI 19.15; 78.35; Jr 50.34, etc., e frequentemente na segunda parte de Isaías: 41.14; 43.14; 44.6,24; 49.7; 59.20, etc.
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Do livro: Instituições de Israel no Antigo Testamento de Roland de Vaux.