Rodrigo, a sua pergunta é muito interessante, pois nos recorda a necessidade de acenar aos diferentes métodos de leitura bíblica. Obviamente não é o momento adequado de fazê-lo, mas aproveito para sublinhar a existência de muitos modos de aproximação e leitura da Palavra de Deus. Há um excelente livro de Cássio Murilo Dias da Silva que trata desse assunto, cuja leitura recomendo com ênfase: Metodologia de Exegese Bíblica (Paulinas, 2000).

Esse livro afirma, primeiro de tudo que "ler é mais importante que estudar", mas repete em continuação que toda leitura bíblica não pode mais se subtrair à necessidade de estudo. É óbvio que existem diversos níveis de leitura e o mais exigente é aquele exegético, reservado aos espertos. Existem porém outras leituras tais como a "orante", a "litúrgica", a "catequética" e ainda outras, como a "popular". Todas essas podem (e devem) considerar as conclusões dos estudiosos, mas não são necessariamente científicas. Creio que a sua pergunta tem íntima relação com a "leitura popular da Bíblia", cuja principal característica é a identificação existencial com o texto lido, dando a ele a função de luz para a vida da própria comunidade que o lê. A experiência contada pela Bíblia serve como espelho para a comunidade de hoje e o Deus que libertou o povo no tempo da narração bíblica liberta também hoje.

Num artigo de Carlos Mesters e Francisco Orofino, Online no site do CEBI, encontramos dez características da leitura popular da Bíblia, elencadas abaixo, que certamente lhe indicarão o caminho para uma exegese libertadora.

1. A Bíblia é reconhecida e acolhida pelo povo como Palavra de Deus. Esta fé já existia antes da chegada do que se convencionou chamar leitura popular. É nesta raiz antiga que se enxerta todo o nosso trabalho com a Bíblia junto do povo. Sem esta fé, todo o método teria de ser diferente. "Não es tu que sustentas a raiz, mas a raiz sustenta a ti"(Rm 11,18).
2. Ao ler a Bíblia, o povo das Comunidades traz consigo a sua própria história e tem nos olhos os problemas que vêm da realidade dura da sua vida. A Bíblia aparece como um espelho, "sím-bolo" (Hb 9,9; 11,19), daquilo que ele mesmo vive. Estabelece-se uma ligação profunda entre Bíblia e vida que, às vezes, pode dar a impressão de um concordismo superficial. Na realidade, é uma leitura de fé muito semelhante à que faziam as primeiras comunidades (cf. At 1,16-20; 2,29-35; 4,24-31) e os Santos Padres.
3. A partir desta ligação entre Bíblia e vida, os pobres fazem a descoberta, a maior de todas: "Se Deus esteve com aquele povo no passado, então Ele está também conosco nesta luta que fazemos para nos libertar. Ele escuta também o nosso clamor!" (cf. Ex 2,24;3,7). Nasce assim, imperceptivelmente, uma nova experiência de Deus e da vida que se torna o critério mais determinante da leitura popular e que menos aparece nas suas explicitações e interpretações. Pois o olhar não se enxerga a si mesmo.
4. Antes deste contato mais vivido com a Palavra de Deus, a Bíblia ficava longe da vida do povo. Era o livro dos "padres", dos "pastores", do clero. Mas agora ela chegou perto! O que era misterioso e inacessível, começou a fazer parte da vida quotidiana de crianças, mulheres e homens empobrecidos. E junto com a sua Palavra, o próprio Deus chegou perto! "Vocês que antes estavam longe foram trazidos para perto!"(Ef 2,13) Difícil para um de nós avaliar a experiência de novidade e de gratuidade que isto representa para as pessoas empobrecidas.
5. Assim, aos poucos, foi surgindo uma nova maneira de se olhar a Bíblia e a sua interpretação. Ela já não é vista como um livro estranho que pertence ao clero, mas sim como o nosso livro, "escrito para nós que tocamos o fim dos tempos" (1Cor 10,11). Às vezes, ela chega a ser o primeiro instrumento de uma análise mais crítica da realidade. Por exemplo, a respeito de uma empresa que oprime e explora o povo, o pessoal da comunidade dizia: "É o Golias que temos que enfrentar!"
6. Pouco a pouco, cresce a descoberta de que a Palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também na vida, e de que o objetivo principal da leitura da Bíblia não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. A Bíblia ajuda a descobrir que a Palavra de Deus, antes de ser lida na Bíblia, já existia na vida. As comunidades descobrem que a sua caminhada é bíblica. "Na verdade, o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia"(Gn 28,16)!
7. A Bíblia entra na vida do povo não pela porta da imposição autoritária, mas sim pela porta da experiência pessoal e comunitária. Ela se faz presente não como um livro que impõe uma doutrina de cima para baixo, mas como uma Boa Nova que revela a presença libertadora de Deus na vida e na luta do povo. As pessoas que participam dos grupos bíblicos, elas mesmos se encarregam de divulgar esta Boa Notícia e atraem outras para participar. "Vinde ver um homem que me contou toda a minha vida!"(Jo 4,29).
8. Para que se produza esta ligação profunda entre Bíblia e vida, é importante: a) Ter nos olhos as perguntas reais que vêm da realidade, e não perguntas artificiais que nada têm a ver com a vida do povo. Aqui aparece como é importante o/a intérprete ter convivência e experiência pastoral inserida no meio do povo. b) Descobrir que se pisa o mesmo chão, ontem e hoje. Aqui aparece a importância do uso da ciência e do bom senso, tanto na análise crítica da realidade de hoje como no estudo do texto e do seu contexto social. c) Ter uma visão global da Bíblia que envolva os próprios leitores e leitoras, e que esteja ligada com a situação concreta das suas vidas hoje.
9. A interpretação que o povo faz da Bíblia é uma atividade envolvente que compreende não só a contribuição intelectual do/a exegeta, mas também todo o processo de participação da Comunidade: trabalho e estudo de grupo, leitura pessoal e comunitária, teatro, celebrações, orações, recreios, "enfim, tudo que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso ou que de qualquer maneira merece louvor"(Fl 4,8). Aqui aparecem a riqueza da criatividade popular e a amplidão das intuições que vão nascendo.
10. Para uma boa interpretação, é muito importante o ambiente de fé e de fraternidade, através de cantos, orações e celebrações. Sem este contexto do Espírito, não se chega a descobrir o sentido que o texto tem para nós hoje. Pois o sentido da Bíblia não é só uma idéia ou uma mensagem que se capta com a razão e se objetiva através de raciocínios; é também um sentir, um conforto que é sentido com o coração, "para que, pela perseverança e pela consolação que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos esperança"(Rm 15,4).