A pergunta que você põe é bem conhecida no ambiente exegético. Ela virou muito popular com a fama que ganhou, há algum tempo, o Evangelho de Judas. Graças à propaganda dada pela imprensa a esse tema, muitas pessoas começaram a interrogar-se sobre o papel de Judas na missão de Jesus. A discussão não é uma prerrogativa moderna, pois os inúmeros textos apócrifos que têm Judas como protagonista já tentavam dar uma resposta, logo no início do cristianismo. Você pode ter uma visão mais detalhada sobre isso lendo um artigo de Jacir de Freitas no nosso site. Esses textos são testemunhas do pensamento dos gnósticos, que julgavam a si mesmos como detentores de um conhecimento especial graças ao qual podiam libertar as almas do destino e da escravidão do corpo material, que era considerado uma prisão. Alguns desses grupos de gnósticos consideravam Judas como um modelo, pois graças a sua atitude em relação a Jesus ele teria desempenhado a sua missão de revelar a toda a humanidade o conhecimento que salva. Eles retinham que Judas sabia toda a verdade sobre o mistério da salvação presente em Jesus e só por isso ele realizou a traição. Portanto, para eles, a traição foi um ato digno de mérito.

Outra tese favorável a Judas tem como contexto o ambiente sócio-político da Palestina do tempo de Cristo. Alguns defendem a relação de Judas com os revolucionários daquele tempo, que almejavam a libertação do país do governo romano. Certas pessoas poderiam ter visto em Jesus o protagonista desta empreitada. Jesus, contudo, (usando palavras pobres) "não se decidia". Eis então que Judas decide "dar uma mão", apressar a intervenção definitiva de Jesus. Por isso ele entrega Jesus aos romanos, na esperança que, a partir daquele momento, tivesse início a revolução e que Jesus conduzisse os seus discípulos a libertar a Palestina da dominação romana.

Ambas as teses defendem a figura de Judas. Penso que não têm fundamento, mas somente tentam encobrir aquilo que é próprio do ser humano: a liberdade de escolha.

A traíção de Judas não é um fatalismo; Judas não nasceu predestinado para trair Jesus. Nem Jesus veio ao mundo para ser crucificado. A traíção e a morte de Jesus são conseqüências de escolhas feita pelos homens e não determinadas por Deus. Se as pessoas (e também Judas) fossem predestinadas a uma determinada situação, a ser traidor, por exemplo, a pregação de Jesus que convida todos à conversão, à salvação, não teria sentido. Judas trai Jesus porque a natureza humana é marcada pelo pecado, pelo escândalo. E essas características estão presentes também em pessoas que aparentemente fazem parte do "grupo de Jesus", os seus discípulos. Esse aspecto é sublinhado pelo beijo que Judas dá a Jesus no momento da traíção (Mateus 26,49).

Lendo os 4 evangelhos canônicos, impressiona o evangelho de João, onde parece que Jesus quase pede a Judas para traí-lo: "Vai e faz aquilo que deves fazer"(João 13,27). Primeiro de tudo, em João existe muita teologia e cada passagem precisa ser bem estudada. Em segundo lugar, João provavelmente já era influenciado pelos gnósticos e ele vê Judas como personificação do mal. Inclusive a posição de João pode ter ajudado a criar uma ligação entre Judas e os Judeus, caracterizando estes últimos como os traídores. Mas tudo isso nos afasta da questão e nos leva para dentro de meros preconceitos.

Concluindo, acredito que a traição de Judas seja expressão da perversidade humana, um escândalo, com o qual convivemos sempre, apesar do anúncio de Cristo.