O tema da violência na Bíblia nos intriga muito. A Bíblia, poderíamos dizer, é um livro bastante "sangrento". O seu relato central é marcado de modo impressionante pela violência, a paixão de Cristo. Por outro lado temos o ensinamento de Jesus que diz "amai os vossos inimigos", que contradiz de forma eloqüente toda atidude violenta. Diríamos que é sobretudo no Antigo Testamento que os atos violentos, tais como aqueles que você mencionou, nos inquietam. Mas é errado tratar a violência na Bíblia separando os dois testamentos.

A violência existia no passado tal como existe ainda hoje. E a Bíblia não esconde isso, mas nos ilumina. Contudo o Deus da Bíblia é de paz, embora a Bíblia, às vezes, coloca esse Deus em perigosa proximidade com todo tipo de violência.

Há dois aspectos que precisamos tomar em consideração. Primeiro de tudo não podemos negar que a Bíblia utiliza uma linguagem estranha para nós, ou seja, fala de poder e de violência para falar de Deus e de seu comportamento no mundo. Várias vezes o texto sagrado descreve YHWH como força capaz de destruir pessoas, povos, cidades e inteiros impérios. Não são raras as narrações de deportação, destruição, mortes. Lembra Maria Clara Bingemer que na maioria das vezes, tais textos têm a função de sublinhar e reforçar o poderio de Deus no mundo, mostrar o vigor e a força determinada desse Deus, que opta por gente pobre, oprimida, explorada, utilizando uma linguagem violenta quase como que uma compensação para a fraqueza antropológica e histórica das pessoas que nele depositam sua fé e sua confiança..

O segundo aspecto que precisamos sublinhar é que o autor sagrado fala de uma experiência de Deus que o povo vive. A Bíblia é um livro vivo e a vontade de Deus se revela na medida em que o povo caminha. Não há, na história da salvação, um momento em que Deus dita toda a verdade, como acontece por exemplo com Maomé. A revelação no judaísmo e cristianismo é histórica; é um processo. No cristianismo temos a plenitude da revelação em Jesus Cristo, expressão radical da vontade de Deus. Portanto, o Antigo Testamento é essencial, mas ao mesmo tempo parcial. Ilumina a nossa compreensão de Cristo e ao mesmo tempo deve ser lido com a luz da revelação trazida por Jesus.

Espero que essas linhas possa lhe ajudar a refletir. Não era, na verdade uma resposta, mas elementos para reflexão. A propósito, acho muito interessante as perguntas levantadas por Maria Clara Bingemmer, que provavelmente são também os questionamentos de tantos, que podem ajudar a propor outras reflexões. Por isso as coloco aqui. Afinal de contas, uma boa pergunta revela um grande processo de reflexão.

- Se Deus aparece ligado à violência e se, por outro lado, é conteúdo inegável da fé bíblica
o fato de que Ele só pode querer o bem, deve-se concluir que a violência é boa e positiva?
- Como compaginar, por outro lado, a revelação de um Deus de toda misericórdia, que
perpassa as páginas da Bíblia, no Antigo e no Novo Testamentos, com essa imagem de um
Deus que usa da violência para mostrar o seu poder? Em que Deus cremos, afinal? De que
Deus somos crentes e de que Deus somos ateus?
- Numa época em que a questão da violência se coloca para toda a humanidade e em que
diversos setores da sociedade e da Igreja buscam soluções não violentas para o drama da
violência, coloca-se para o cristão que baseia sua fé sobre a revelação bíblica o seguinte
dilema: Como ser não violento e crer num Deus violento? Há que fazer uma escolha
necessariamente empobrecedora, qual seja, escolher ou a imagem do Deus bíblico ou o
ideal da não violência? Ou ainda, há que escolher entre o Deus do Antigo Testamento, que
se envolve em práticas de violência e o Deus de Jesus, que se revela como amor redentor na
impotência da cruz?