1 – Profeta Amós, a luta contra a injustiça social
Provavelmente as composições mais antigas do livro do profeta Amós (Am 1-6; 7-9) datam de meados do século VIII a.C., e surgiram como literatura de protesto e resistência. “O acento principal da mensagem de Amós está na crítica social e no anúncio de um juízo iminente de Deus na história, bem como na tênue, mas clara exigência do restabelecimento da justiça como alicerce das relações sociais”[1].

Amós é um profeta precursor, radical, exemplar e paradigmático. A profecia de Amós é, em certo modo, um divisor de águas na história da profecia no sentido de que instaura um novo jeito de ser profeta.

O livro de Amós está organizado em duas grandes unidades literárias: I) Am 1-6: Palavras e II) Am 7-9: Visões.

1.1 – Endurecimento ou perdão?
Amós, em Am 4,4-13[2], reflete sobre Culto, história, endurecimento e perdão e nos ajuda a refletir sobre três aspectos intimamente entrelaçados, fundamentais na ética profética sobre a concepção de pecado em relação ao culto, à história e aos limites de uma possível reconciliação com Deus. Diante do “pecou, pecou... endureceu, endureceu..., haverá castigo ou perdão? A conclusão que se coloca na base e no fim do estudo de Am 4,4-13 é “Prepare-se Israel, para encontrar-se com seu Deus!” Trata-se de um anúncio de punição in extremis diante da incapacidade de Israel de reagir, ou de uma velada promessa de perdão? Ou existe  outra interpretação possível?

A declaração final de Javé ao ser humano que fecha a unidade Am 4,4-13 constitui-se quase como uma nova revelação do Sinai, que deve por fim ao conflito entre o ser humano e a divindade, em favor do ser humano. As punições pedagógicas de Javé deixam lugar a um esclarecimento que abre o coração do ser humano para que veja o conjunto da sua história e reconheça o processo de endurecimento de seu coração.

Am 4,4-13 evoca, portanto, uma situação que há certa semelhança com aquela do relato das pragas do Egito, mas não é obviamente, a recordação daqueles fatos. O discurso de Amós menciona, talvez, um passado histórico não identificável nem pela forma e nem pelo conteúdo do texto. As pragas do tempo do Êxodo feriam o Egito, não Israel, e de uma maneira diferente da relatada em Amós 4. Além do mais, as tais “pragas” eram no mundo antigo o resultado de situações críticas naturais ou políticas: a fome era o resultado de toda estiagem prolongada e peste nas plantações, assim como a morte dos jovens (v. 10) é o efeito de toda ação militarista, no mundo antigo e moderno.

Às pragas ou punições descritas se reúnem ainda a menção de Sodoma e Gomorra. O discurso de Amós 4 quer, portanto, dar conta de toda a antiga história de Israel, também de Israel patriarcal, para aplicá-la a uma nova situação. 

Um ponto particular de relação com o Êxodo é a presença do refrão “mas não retornastes a mim” que estrutura o texto de Amós 4,4-13. Assim, como no relato das pragas o endurecimento do coração do Faraó é o motivo estruturante que faz aumentar as pragas.

No relato do Êxodo, um primeiro grupo de textos, atribuídos tradicionalmente à fonte Javista (J), apresenta de fato o faraó como responsável pelo seu próprio endurecimento, como havia predito Deus.[3] O outro grupo de textos (os chamados “heloístas”) atribuem a obstinação ora ao faraó (Ex 9,35) ora a Deus mesmo (Ex 10,20.27). O relato sacerdotal (P) o atribui habitualmente a Javé.

Esta diversidade de concepção no atribuir a responsabilidade pelo pecado aparece também em outros textos fora do Êxodo, com diferente vocabulário e problemática. Em 2 Sm 24,1, Javé é o responsável direto pelo pecado de Davi devido ao recenseamento; Segundo 1 Cr 21,1 a responsabilidade é, ao invés, de Satanás. O verbo hebraico usado é o mesmo: swt (= incitar, seduzir).

Tanto em Êxodo como em Am 4,4-13 se coloca um grande problema exegético e teológico: É possível e legítimo que Deus continue a aplicar punições que levam a um endurecimento sempre crescente? Não se comporta Javé assim como o pai que exagera, com sua punição, o seu filho e o força a se rebelar (cf. Ef 6,4)?

É necessário reconhecer que por trás dos textos de endurecimento há o mistério da liberdade humana e “onipotência” divina: amor infinito de Deus. Em relação a Deus, há uma consciência profética que as obras e a Palavra de Deus não podem permanecer sem efeito (cf. Is 55,11), mas é sempre eficaz (diferente de eficiente). Se não produzem imediatamente a conversão, devem amadurecer o sujeito para um novo castigo, o que, em última análise, não exclui a possibilidade de conversão.

Em relação ao “castigado” (?), há consciência do fato que a exortação à conversão, quando não ouvida, se torna uma condenação. Isto é, nada mais, nada menos, que a dinâmica das relações interpessoais. Quando duas pessoas se encontram e começam a se conhecer, a relação pode progredir, parar ou eventualmente morrer. Mas enquanto existe, cada ação e reação levam ao crescimento ou diminuição daquela relação. Todo ato (ou omissão) nas relações interpessoais soma e cultiva a relação ou a empobrece descultivando-a. Nenhum ato fica neutro.

De modo semelhante, na relação do ser humano com Deus, cada ação que não melhora a relação, a piora, mas jamais a deixa igual. Se não se aceita um convite à conversão, como uma oferta de amizade, o recusa. E esta recusa tornará mais difícil que aconteça um novo convite.[4] Além disso, aceitar uma nova oferta de amizade, implicaria em reconhecer o erro precedente, o que pode exigir um grau maior de humildade.

Em relação aos profetas e profetisas, este processo se explica na medida em que os/as  “intérpretes de Javé” sabem do paradoxo da missão deles. Os profetas e profetisas sabem que a palavra profética conduz às vezes à conversão de alguns poucos, mas na maioria das vezes leva ao endurecimento de muitos. Os oráculos de condenação no futuro, pronunciados com absoluta segurança, refletem a consciência dos profetas de que a advertência seria inútil.

A consciência que os profetas e profetisas têm das três realidades descritas acima se apresenta, de modo muito claro, em Is 6,9-11:“Então disse ele: Vai, e dize a este povo: Ouvis, de fato, e não entendeis, e vedes, em verdade, mas não percebeis. Engorda o coração deste povo, e faze-lhe pesados os ouvidos, e fecha-lhe os olhos; para que ele não veja com os seus olhos, e não ouça com os seus ouvidos, nem entenda com o seu coração, nem se converta e seja sarado. Então disse eu: Até quando Senhor? E respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, e as casas sem moradores, e a terra seja de todo assolada”.

 

2 – Amós, conspirador e subversivo?

Em Am 7,14 Amós se recusa a ser considerado profeta segundo a ótica de um sacerdote vassalo do poder político. Amós se define como “vaqueiro” e cultivador de sicômoros. No v. 15 Amós parece ser um pastor que cuida do rebanho miúdo (ovelhas e cabras), mas não um vaqueiro. Em Am 7,10-17 não há a intenção primeira de descrever pessoalmente a profissão do profeta, mas enfatiza o fato de que Amós foi retirado da sua vida precedente, do seu mundo, das preocupações domésticas para proclamar a Palavra de Deus.

Am 7,10-17 quer legitimar o conteúdo da profecia de Amós e ajudar a comunidade a superar todos os preconceitos que possam existir contra o profeta por causa da sua origem humilde, como se fosse um “nordestino”, um sem-terra, um menor de rua, um portador do vírus HIV etc. O relato de Am 7,10-17 quer nos dizer que a profecia vem da margem, da periferia, do meio dos marginalizados e excluídos. São estes, por excelência, os “intérpretes de Javé”.

Na Bíblia esse “gênero” é utilizado para descrever de maneira diferente as vocações de Moisés, Gedeão, Eliseu, Saul. Mas uma estreita relação se encontra em 2Sam 7,8. Natã transmite a Davi a mensagem de Javé: “Eu te tirei das pastagens, pastoreavas as ovelhas”. O elemento que caracteriza estas situações não é o fato do convocado pertencer a um grupo, mas, ao contrário, o fato de ele ser um “de fora”, um excluído. Assim Am 7,14 quer exprimir a distância de Amós das formas institucionais da profecia e dos profetas “da corte”.

O relato do confronto entre o sacerdote Amasias e Amós (com a implicada presença do rei) oferece a justificação da decisão de Javé. O povo não somente não ouviu as diversas palavras transmitidas por Amós, mas decidiu silenciá-lo, expulsando-o para sua terra. Já não há nada mais a esperar senão o fim definitivo, e diante disso resta somente a lamentação. O profeta anuncia a necessidade de conversão; pede perdão a Deus pelo povo; pede para parar a punição. O rei (e a monarquia) e o Templo expulsam o profeta, silenciando-o. O povo sofrerá muito mais. Ai de um povo que não escuta seus profetas e profetisas, e pior ainda, que os persegue, expulsa e os silencia.

Em Am 7,10-17 revela a interpretação que setores da classe dirigente tinham do conteúdo da profecia de Amós. Aos olhos da elite, o profeta é um “conspirador”, interessado em “golpe de estado”. Para Javé e o povo empobrecido Amós é um profeta. Para a elite ele é um “subversivo”, um agitador.

 

3 – Vacas de Basã são mulheres ou homens opressores?

Em Am 4,1-3 temos a seguinte profecia: “OUVI esta palavra, vacas de Basã, que estais sobre monte de Samaria, que oprimis os fracos, que esmagais os excluídos, que dizeis aos vossos senhores: “Trazei-nos o que beber!”. O  Senhor Javé jurou, pela sua santidade: sim, dias virão sobre vós, em que vos carregarão com ganchos e a vossos descendentes com arpões (de pesca). E saireis pelas brechas que cada uma tem diante de si, e sereis empurradas em direção ao Hermon, oráculo de Javé”.

Segundo uma interpretação mais tradicional, Am 4,1-3 seria uma investida do profeta Amós contra as mulheres ricas de Samaria, designadas como “vacas de Basã”, mulheres de personagens importantes, que ocupam o tempo em luxuosos banquetes, e ao mesmo tempo são responsáveis pela opressão e exploração dos empobrecidos. A imagem de um banquete só de madames é, no mínimo, algo curioso em uma sociedade reconhecidamente machista e patriarcal, assim como atribuir às mulheres a responsabilidade pela opressão e pela injustiça.

A região de Basã, como o Líbano e o Carmelo, é famosa pela fertilidade do solo. A tristeza causada pela punição divina se manifesta na debilidade do Líbano, do Basã, do Carmelo e do Saron (Is 33,9). Ao contrário, a generosidade divina se expressa no nutrimento do povo com a “manteiga das ovelhas e dos touros de Basã” (Dt 32,14). O anúncio messiânico, com o qual se conclui o livro de Miquéias, inclui a promessa de um pasto abundante “em Basã e em Galaad, como nos dias antigos (Miq 7,14). No ambiente de louvor do Sl 68, “Basã” são os montes (v. 16) que testemunham, junto com o Sinai e a natureza, a grandeza das obras de Javé. Logo integrar “Basã” numa imagem depreciativa é algo estranho ao uso corrente de “Basã” na Bíblia.

De “vaca de Basã” não se fala em nenhum outro lugar no Primeiro Testamento da Bíblia. As montanhas de Basã são famosas pelos seus touros, cabritos e carneiros (mas não vacas; cf. Dt 32,14). Por isso os touros de Basã podem ser imagens dos inimigos poderosos (cf. Sl 22,13 e, sobretudo, Ez 39,18).

A expressão “vacas de Basã” adquire um sentido mais verdadeiro dentro da cultura bíblica se o termo “vacas” não for utilizado em relação a mulheres, mas a homens, aqueles que quiseram ser como os touros de Basã, pela força deles, autoridade e dignidade se tornaram “vacas”, com as conotações depreciativas que as formas femininas podem ter no Primeiro Testamento.

Neste contexto, os “seus senhores” (Am 4,1b, com sufixo masculino) se referem provavelmente não aos “maridos”, como propõem algumas traduções, um uso pelo qual não se tem nenhuma outra ocorrência, mas refere-se a uma pessoa de mais autoridade (política). “Senhor”, além do freqüente uso como título divino, se refere a Acab (2 Rs 10,2.3.6), ao Faraó (Gn 40,1), ao Rei da Babilônia (Jer 27,4), e em casos isolados a várias pessoas: “outros senhores...” (Is 26,13).

A interpretação que propomos de “vacas de basã”, acima, está em sintonia com a hipótese de que “vacas de basã” seja também uma alusão às estátuas cultuadas. Logo, em Am 4,1-3 está uma forte denúncia do poder opressor de um “senhor” com poder político de dominação respaldado por uma legitimação religiosa.

 

4 – Amós: “Restabeleçam a justiça!”

A profecia de Amós é “uma crítica veemente e contundente aos agentes e mecanismos de exploração e opressão dos camponeses empobrecidos sob o governo expansionista de Jeroboão II e sob as condições de um incremento de relações de empréstimos e dívidas entre pessoas do próprio povo no século VIII a.C.”[5]. Em outros termos, o profeta Amós não apenas critica pessoas corruptas, mas questiona também de modo muito forte o sistema gerador de pessoas corruptas. Não somente as mazelas pessoais estão na mira do “camponês” que entrou para a história como um grande profeta. Amós tem consciência de que o problema fundamental da injustiça reinante na sociedade não é fruto somente de fraquezas pessoais, mas tem como causa matriz estruturas sócio-econômico-político-culturais e religiosas que engrenam uma máquina de moer pessoas. Na mira de Amós também estão relações comerciais que causam endividamento, aprisionam pessoas e escravizam, retirando a liberdade de ser pessoa humana.

Além das denúncias sociais, a profecia de Amós destaca-se com o anúncio de um juízo iminente de Javé na história do seu povo. Amós inverte as expectativas quanto a um tão sonhado “dia de Javé” (Am 5,18-20). Este não será mais uma “ideologia de segurança político-religiosa” pelos fortes de Israel. A perversão da justiça para os pobres, a opressão dos empobrecidos e a exploração das pessoas mais enfraquecidas clamam pelo juízo divino. O “dia de Javé” será um “dia mau” sobre os fortes de Israel, sobre o estado tributário, suas instituições e seus agentes.[6]

Amós critica com coragem a “corrida armamentista” de Israel. Ele anuncia que serão desmanteladas as forças militares dos estados vizinhos (Am 1,5.8b.14b; 2,2b) e sobretudo de Israel (Am 2,13-16; 3,11b; 5,2-3; 6,13-14).

O profeta Amós denuncia duramente também as instituições religiosas que estão justificando o processo de extorsão de tributos da população camponesa (Am 4,4-5; 5,21-  23). Pelo conluio com a opressão econômica a religião oficial também será dizimada (templos) e seus agentes (Am 5,27; 7,9; 9,1). “Odeiem o mal e amem o bem: restabeleçam no portão a justiça!” (Am 5,15). “Aqui está a exigência positiva por excelência na profecia de Amós. Os israelitas são conclamados a reconstruir as relações sociais baseadas na justiça e no direito (mishpat / sedaqah). Só assim será possível escapar do juízo vindouro anunciado. O futuro de um “resto” passa pela prática de Justiça”[7]. O juízo abre caminho para a justiça. A presença dos profetas e profetizas no meio do povo deixa Javé livre de qualquer responsabilidade diante da punição que o povo merece. 

 


[1]HAROLDO REIMER, “Amós – profeta de juízo e justiça”, em Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras, RIBLA 35-36, Ed. Vozes, Petrópolis e Ed. Sinodal, São Leopoldo, 2000, p. 171.
[2]Sugiro que antes de você continuar a leitura do texto, leia na Bíblia Am 4,4-13. Assim você entenderá melhor a reflexão que se segue.
[3]Cf. Ex 7,14.22; 8,11.15.28; 9,7.34.
[4]Gato escaldado com água quente tem medo até de água fria, diz a sabedoria popular.
[5]HAROLDO REIMER, “Amós – profeta de juízo e justiça”, em Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras, RIBLA 35-36, Ed. Vozes, Petrópolis e Ed. Sinodal, São Leopoldo, 2000, p. 188.
[6]A fé em um Deus que é infinito amor não coaduna com a existência de inferno como um lugar de punição. No entanto, se não há algum tipo de inferno, os opressores ficarão sem nenhuma punição?
[7]HAROLDO REIMER, “Amós – profeta de juízo e justiça”, em Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras, RIBLA 35-36, Ed. Vozes, Petrópolis e Ed. Sinodal, São Leopoldo, 2000, p. 189.