A questão de como interpretar Gênesis 6, sobretudo a frase que se refere a "filhos de deus", já está aberta aqui no site. Convido, principalmente, a ler a excelente resposta da Ombretta sobre esse tema.

Recordemos o texto que começa o capítulo 6 do Gênesis (1-4):

1 Quando os homens começaram a ser numerosos sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, 2 os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulheres todas as que lhes agradaram. 3 Iahweh disse: "Meu espírito não permanecerá no homem, pois ele é carne; não viverá mais que cento e vinte anos." 4 Ora, naquele tempo, quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos, os Nfilim habitavam sobre a terra; estes homens famosos foram os heróis dos tempos antigos.

Para a expressão traduzida aqui com "filhos de Deus" (Bíblia de Jerusalém) o texto hebraico traz "Bne haElohim" (literalmente "filhos de deuses"). Elohim, embora seja em si um plural, é traduzido normalmente como "Deus", na Bíblia.

Antes de considerar a frase em si, é muito importante lembrar que o contexto desse capítulo é o início da narração do dilúvio, a pena que Deus dá ao povo pelos inúmeros pecados que cometaram. Por isso, é evidente que o início do capítulo tende a sublinhar a maldade da humanidade em relação ao plano de Deus, tentando justificar a razão do dilúvio.

O ponto de partida para a leitura de Gênesis 1-11, bem lembrado já aqui no site é que  as histórias do Gênesis representam uma “teologia da história”, ou seja, são uma tentativa de explicar com palavras e imanges tiradas da experiência humana e da fé o por que da existência do mundo, do homem e da mulher, da atração dos sexos, do pecado e da morte.

Assim trata Ombretta o caso desses versículos:

Também em outras culturas do Oriente Médio existiam mitos, histórias da criação. Nos mitos antigos muitas vezes encontramos referência a outros deuses ou a semi-deuses, heróis, divinidades que se tornam homens. Assim, por exemplo, o costume do “casamento sagrado” que aconteciam entre o rei e as prostitutas sagradas em Babilônia era explicado e motivado pelo mito. No nosso caso temos, talvez, o eco de um mito que conta o nascimento de heróis semi-divinos nascidos de casamentos entre deuses e mulheres o deusas e homens. O objetivo é o de criticar a ideologia que subjaz, segundo a qual a união ritual entre o rei – encarnando o papel de ‘filho de deus’ – e a prostituta sagrada garantia a fecundidade à terra e ao povo. No cap. 6 temos a crítica a tudo isso: por exemplo, no ver. 3 o autor sublinha que é Deus que dá a vida e intervem para decretar, amargamente, que o homem ‘é carne’ e é limitado pelos seus anos.

Identificar os personagens que aparecem nesta história – os ‘filhos de Deus’, as ‘filhas dos homens’ os ‘gigantes’ – não é fácil. Na ótica dos mitos mencionados acima, os primeiros poderiam ser os reis que praticavam os casamentos sagrados e assim o texto tem como intenção criticar a visão pagã de uma vida levada na ilusão de poder criar a vida com as próprias forças e só com os sistemas humanos, sem Deus. Outra hipótese que se fez é que se trata dos filhos de Set (os assim chamados ‘setitas’), que pecam quando se unem às mulhers pagãs. Uma outra hipótese diz que os personagens seriam seres celestes (como indicado na tradução grega dos LXX, que provavelmente se apoia em outros textos bíblicos: Jó 1,6; 2,1; 38,7; Sl 19,1). Neste caso o pecado seria que estas criaturas, misturando-se com as mulheres, eliminam o limite entre o céu e a terra, estabelecido por Deus.

Essa passagem não fica clara para nós. Mas tenhamos consciência que o autor retoma elementos de uma tradição popular de caráter mitológico e tenta sublinhar que Deus propõe uma nova criação, que será realizada após o dilúvio, porque o coração da criatura se afastou de forma gigantesca do criador: Iahweh viu que a maldade do homem era grande sobra a terra, e que era continuamente mau todo desígnio de seu coração (Gênesis 6,5).

Anjos caídos
Embora o texto nunca mencione a palavra "anjo", nele é muitas vezes lida a presença de "anjos caídos". Isso se deve ao fato que vários manuscritos da LXX (tradução grega da Bíblia Hebraica) traduzem "filhos de Deus" com "anjo". Essa interpretação foi marcada também pelo pensamento de padres da Igreja (Justino, Eusébio, Clemente de Alexandria, Origem, etc). Diz tal corrente que "anjos caídos" teriam tido relações com mulheres humanas, gerando assim grandes monstros.

Essa tradição não tem base no texto bíblico e certamente é um desvio do sentido original do texto.