O tema da sua pergunta, como entender os primeiros capítulos da Bíblia, sempre retorna aqui no site. Repetimos, muitas vezes, a mesma reflexão, tentando alargar o horizonte do leitor, e sei que não é fácil mudar a nossa mentalidade, pois durante séculos foi incutida a teologia segundo a qual tudo nasceu de um momento para o outro, como num click mágico.
Mas na tensão da sua pergunta fica evidente a dificuldade que temos em ler os primeiros capítulos da Bíblia, uma dificuldade que não esvanece mesmo para quem continua aceitando as ideias passadas por uma teologia inocente, secular. Na verdade, os primeiros capítulos da bíblia não são história, no sentido em que estamos acostumados a entender história. Ou seja, não se trata de um evento histórico, pontual, acontecido em determinado momento, numa data precisa. É uma leitura de uma pessoa de fé, que interpreta a ação de Deus na história da origem da humanidade e de toda a criação. Não existiram um homem e uma mulher Adão e Eva, como personagens históricos. A vida nasceu de Deus, e a obra prima de suas mãos são o homem e a mulher. É isso que ensina a Bíblia! Para passar essa mensagem usa um estilo literário muito próximo da mitologia. A Bíblia não conta mentiras, mas tão pouco a sua Verdade se limita às palavras materiais escritas no livro. Elas são um instrumento que ultrapassam a realidade empírica e alcançam a esfera divina, graças à inspiração.
Se lermos com olhos críticos, já como simples leitores - sem necessidade de sermos exegetas, resulta evidente que a intenção dos primeiros capítulos da Bíblia não é aquela de descrever um quadro geral material de como foi o início da vida na terra. Basta ver que temos dois relatos da criação, um no primeiro capítulo e outro no segundo (a partir do versículo 4) do livro do Gênesis. Quer dizer que Deus criou tudo duas vezes? Obviamente se trata de dois contos diferentes, escritos por pessoas diferentes, com perspectivas diversas. Na "primeira criação" o homem é criado "a imagem e semelhança" e nada é dito do barro. É somente no segundo conto que aparece a questão da criação do ser humano do barro. Se tudo fosse "história", segundo a nossa concepção, qual dos dois contos estaria correto? Deveríamos eliminar um dos dois? E você já prestou atenção naquilo que o Gênesis diz em relação da criação das estrelas, do sol e da lua, criados no quarto dia da criação (1,14-19)? Quando o texto fala de sol e lua, os chama de "ma'or", que em hebraico significa "fonte de luz" ou "lâmpada" (as nossas traduções traduzem como "luzeiro"). Mas nós hoje sabemos muito bem que a lua não é nenhuma fonte de luz, mas simplesmente reflete a luz do sol. Se quiséssemos defender que o autor da Bíblia sabe tudo, por que fez esse erro assim grande? É óbvio que a narração é limitada pela experiência de fé do autor sagrado e não um conto histórico daquilo que aconteceu. Não há nenhum erro na Bíblia, pois a Bíblia não traz simplesmente verdades materiais, mas princípios que transcendem a realidade e a iluminam. Por isso a história dos primeiros capítulos do Gênesis não é simplesmente história de dois homens que deram início à humanidade, mas transmissão de uma grande verdade: a vida vem de Deus e nós somos suas criaturas.
Procurar coerência história na narração da criação segundo o Gênesis é caminhar por estrada errada.