É uma pergunta inteligente, pois nos permite refletir sobre o verdadeiro sentido do dízimo, conforme proposto pela Bíblia. Mas precisa também prestar atenção, pois o dízimo já no período bíblico não era só de alimentos.
Vamos por etapas...
O dízimo põe suas raízes em costumes e atitudes de fé muito antigas, que vão além da própria existência do povo judeu. A prática nasce das ofertas que os fiéis de religiões antigas faziam aos próprios deuses. É claro que nesse período antigo ainda não se chamava "dízimo", "décima parte", mas a ideia já existia. Em muitos povos era simplesmente uma taxa, às vezes cobrada pelo poder civil. De fato, essa era a grande diferença em Israel. A décima era entendida como um dom a Deus e não uma taxa pagada para o governo. Há somente uma excessão, em 1'Samuel 8,15 onde se menciona a décima para o rei. Em todas as outras passagens bíblicas o dízimo é visto como uma resposta da pessoa ao bem realizado por Deus. É nesse sentido que vemos, por exemplo, Abraão, depois de ter sido bento por Melchisedek, quer dar a ele a décima parte daquilo que tem (Gênesis 14,20). E também Jacó, depois do encontro com Deus em Betel, promete dar a Ele o dízimo de tudo que receberá de Deus (Gênesis 28,22).
Na Lei, na Torah, em Levítico 27, junto com os votos voluntários feitos a Deus e às normas referentes aos primogênitos, que pertencem a Deus, é regulamentado também o dízimo. Nesse texto se diz que a décima parte dos "grãos da terra" e das "frutas das árvores", além da décima parte dos animais, tinham que ser "consagradas ao Senhor" (versículos 30 e 32), isto é, precisam ser colocadas de lado para o Senhor. O dom de alimentos podia ser oferecido também em dinheiro. Nesse caso, porém, o total devia ser aumentado de um quinto (1/5) - veja Levíticos 27,31. Os animais não podiam ser trocados por dinheiro.
Para quem era destinado o dízimo
Por princípio, tratava-se de um dom a Deus. Mas, selecionado para Deus, precisava ser entregue aos Levitas (tribo que não teve um pedaço de terra na divisão da Terra Prometida), conforme dito em Números 18,21 seguintes. Esses, por sua vez, deviam dar a décima daquilo que recebiam aos sacerdotes, aqueles que trabalhavam no santuário. A oferta precisava ser levata até o Templo (Deuteronômio 12,5). Se os alimentos podiam apodrecer durante a viagem, era necessário levar o equivalente em dinheiro.
A cada 3 anos, porém, o dízimo não devia ser levato ao santuário, mas diretamente onde moravam os levitas e doado aos pobres, aos estrangeiros, aos órfãos e viúvas, com quem se fazia uma refeição (Deuteronômio 14,28 seguintes).
Regularidade do dízimo
Temos esses passos bíblicos que indicam como era regulamentado o dízimo, todavia não se sabe ao certo com qual regularidade o povo desse tal contribuição. É díficil imaginar o povo indo todo ano levar ao santuário a própria oferta. No reino do norte, por exemplo, Amós fala ironicamente do dízimo levado pelo povo (Amós 4,4), deixando entrever que a execução do preceito era muito limitada. O rei Ezequias, em Jerusalém, tentou colocar em prática novamente esse preceito, mostrando que não era mais praticado (2Crônicas 31,5). O mesmo foi feito durante o período em que os judeus voltaram do exílio em Babilônia (Neemias 10,38), mas Malaquias 3,8 nota que esse compromisso não era respeitado, conforme ordenava a Lei.
No período no Novo Testamento, as leis sobre o dízimo foram mudadas e, às vezes, se tornaram mais complexas. Existiam 3 tipos de dízimo: o primeiro era dos cereais e das frutas, que pertencia aos levitas; o segundo era devida ao Templo; e o terceiro tipo de dízimo era dado aos pobres.
Jesus e o dízimo
No tempo de Cristo os fariseus eram muito escrupolos na observância das leis inerentes ao dízimo (veja Lucas 18,12). Jesus não desprezava esta atitude, mas nota claramente que é importante ter presente não somente o costume, mas principalmente a base teológica que motiva o dízimo. Isso é evidente quando, em Mateus 23,23 ,diz: "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórida e a fidelidade. Importava praticar estas coisas, ma sem omitir aquelas" (veja também Lucas 11,42).
Praticamente Jesus sublinha que o dízimo não é um simples gesto de costume, mas um modo de honrar a Deus, reconhecendo que tudo aquilo que se possui e se recebe vem de Deus.
Aplicação para hoje
Nos muitos textos presentes aqui no site sobre o dízimo, já exprimimos de forma palese a nossa opinião. Colocamos sempre em dúvida o uso do dízimo como uma taxação dos fiéis e até mesmo a necessidade de ter que dar 10% daquilo que se ganha (veja essa resposta).
Muitas comunidades fundamentam o pedido do dízimo dizendo que a igreja tem muitos gastos. Acredito que seja correto que os fieis de uma comunidade se responsabilizem pelos seus gastos (luz, água, materiais para a pastoral e para o culto, salário do padre/pastor, etc), mas nesse caso não precisa pedir 10%, mas o necessário para a sobrevivência da comunidade. Tudo deveria ser acompanhado por um balanço econômico claro, formulado por uma equipe de economia. Muito melhor se tudo fosse feito por pessoas diferentes do pastor/padre. Desse modo se evitaria especulações e dúvidas em relação ao uso do dinheiro arrecadado e até mesmo a possibilidade de situações desagradáveis, onde pessoas, movidas por uma certa radicalidade, privam a própria família daquilo que lhes pertence. Os que conduzem as comunidades são os primeiros a deverem evitar que tais situações aconteçam.
Em relação ao dízimo, não podemos esquecer de um aspecto presente desde sempre na lógica bíblica desse gesto: a questão social. Uma parte da oferta sempre foi destinada às pessoas carentes. É óbvio que hoje pagamos as taxas ao governo e seria ele o responsável do bem estar da população. Mas é evidente que a atuação do governo é fraca, ou, às vezes, inexistente. Nesses casos acho muito justo que as comunidades se organizem e seus membros contribuam para sanar as injustiças presentes no seu meio. Portanto, uma comunidade, com o dinheiro dos fieis, não deve limitar-se a pensar na própria subsistência, mas encontrar meios de ajudar também os mais pobres.
Tudo isso se faz com campanhas e, sobretudo, com muita transparência e de modo espontâneo. Cada um é livre de contribuir, segundo as próprias condições. Alguém que ganha 500 reais e não consegue pagar as próprias contas, não deve dar 50 reais para a comunidade!