É claro que Deus nunca mandou matar ninguém. Contudo, de fato, em Êxodo 20,13 temos aquilo que chamamos o quinto mandamento: não matar. E você tem razão: em outros textos bíblicos parece que Deus comanda a morte de certas pessoas, como em Êxodo 21,12: Quem matar alguém, será morto (o capítulo 20 de Êxodo não tem o versículo 27 e por isso não sei exatamente a qual versículo você se refere). Esse problema engloba a questão da violência na Bíblia: se Deus é o sumo bem, como pode permitir que seu povo faça a guerra, como pode permitir que o homem mate o outro, sofra?

Se abrirmos o horizonte, a pergunta que devemos fazer é a seguinte: a Bíblia erra? Isto é: diz uma coisa e depois outra? Há muito tempo essa questão tem perturbado os fiéis e leitores da Bíblia. Não é preciso fazer uma lista de contradições e "erros" presentes na Bíblia para fundamentar essa inquietação; basta o caso que você coloca (tem muitos outros!). Apesar disso falamos sempre da "verdade" da Bíblia, sintetizado na expressão latina de Tomás D"Aquino: Quidquid in Sacra Scriptura, verum est. De fato normalmente o fato que a Bíblia não erra é tido como uma consequência natural da Inspiração. Em outras palavras, por que a Bíblia contém Palavra de Deus inspirada pelo Espírito Santo aquilo que ela transmite é verdadeiro, sem erro e guia o ser humano a sua salvação. Mas a discussão sempre esteve aberta. Inclusive a tradição rabínica diz que uma das bênçãos que se receberá com a volta de Elias será a explicação das aparentes discordâncias entre Ezequiel e a Lei, o Pentateuco.

Para abordar esse tema e dar uma resposta é preciso fazer um discurso teológico que pode parecer um pouco chato, mas sumamente necessário aqui.

A palavra chave nessa questão é a Revelação. A Bíblia é revelação de Deus. Essa revelação não é uma mensagem que cai do céu pronta, mas acontece na história. Essa diferença é evidente em relação ao dom do livro no mundo muçulmano, onde Maomé recebe de Deus a Lei, pronta, "da noite pro dia". No mundo hebraico e cristão Deus se revela aos poucos, na história. É um processo histórico. A revelação tem um caráter progressivo. Somente em Cristo é consumada a obra da salvação, pois ele completa a revelação. Falando mais objetivamente, a revelação passa por um processo de desenvolvimento. As grandes verdades sobre o ser humano, sobre Deus, a igreja e o povo de Deus são desenvolvidas durante o percurso histórico natural. Esse processo tende a uma realização, a um auge, que é Jesus Cristo.

Outro ponto importante, que necessita ser sublinhado, é que em nenhuma passagem bíblica encontramos a Palavra de Deus diretamente. Ela é doada a nós sempre através de uma pessoa, sempre de modo humano e em linguagem humana. Quando conta os diálogos de Deus com seus amigos tem sempre por trás uma redação humana. Não pretendemos "humanizar" a Bíblia, mas mostrar como ela é inserida dentro da história, da realidade humana, embora tenda a um futuro de revelação plena.

Diante desses dois parágrafos acima, é lógico relativizar os "erros" bíblicos. A revelação é um processo e por isso, em certas etapas da vida de Israel, não podemos pretender a clareza revelada em Cristo, embora já venha almejada. De fato, como ensinam os Padres da Igreja, o Novo Testamento é latente no Antigo. Essa é a atitude hermeneutica necessária para ler as passagens tidas como difíceis da Bíblia. Se encontramos cenas de violência, que os textos parecem justificar como vontade e ou ordem de Deus, devemos julgá-las dentro da perpectiva de progresso da revelação: foi admissível num certo período histórico, mas inconcebível em Cristo, na revelação plena.

Pode ser muito esclarecedor citar aqui o famoso caso de Galileu Galilei. Lembramos como ele foi condenado pela igreja porque defendia que a terra gira em volta do sol e não ao contrário, como pode parecer através das histórias da Bíblia (veja, por exemplo, o milagre de Josué, que pára o sol "“ Josué 10,12-14). A teoria de Galilei não era somente científica, mas era acompanhada também de uma reflexão exegética, que transparece, por exemplo, na carta que escreve a Cristina di Lorena, uma mulher nobre da Toscana. Nesta carta ele cita o ensinamento de Santo Agostinho, que dizia que o Espírito de Deus, que falava através dos autores sagrados, não quis ensinar aos homens coisas que não tinham utilidade para a sua salvação. A partir deste princípio, o cientista italiano diz: O Espírito Santo não quis nos ensinar se o céu se move ou está parado, nem se a sua figura tem forma esférica ou de disco, nem se a terra esteja ao seu centro ou às margens do céu. Portanto se o Espírito Santo não quis ensinar-nos tais coisas, se defendemos esta idéia ou aquela, é correto reter que uma seja segundo a fé e a outra errônea?.