Os quatro últimos capítulos de 2Samuel (acrescentamos o capítulo 21) normalmente são considerados como apêndices. São 6 textos distintos:
1. Fome de 3 anos (21,1-14);
2. Os quatro gigantes filisteus (21,15-22);
3. Capítulo 22 é uma poesia, o cântico de Davi;
4. As últimas palavras de Davi (23,1-7);
5. Os valentes de Davi (23,8-39);
6. Capítulo 24: peste de 3 dias.

Dá pra ver que são apêndices por que o texto interrompe a história da família de Davi e da sucessão ao trono, que recomeçam em 1Reis, com Davi velho.

Os últimos capítulos de 2Samuel provam como a composição dos livros bíblicos é muito mais complexa daquilo que nós normalmente imaginamos. Pensamos que o autor sagrado se sentou e escreveu o livro bíblico, do início até o fim, em alguns meses, como fazem os autores de hoje. Não foi assim! As histórias eram contadas oralmente e às vezes colocadas por escrito, isoladamente. Só bem mais tarde algum autor, quem sabe alguém que trabalhava pra corte, reuniu as várias histórias que circulavam dispersas e criou uma obra. Às vezes esse autor/redator redigiu algum texto para reunir e dar coerência ao seu escrito, outras vezes nada mais colocou uma história ao lado da outra, sem muita preocupação com a lógica da narração. Um elemento evidente temos nesses 4 capítulos que estamos vendo: no capítulo 23 encontramos as "Últimas palavras de Davi", mas logo em seguida, no capítulo 24, temos Davi que ordena a Joab de fazer o recenseamento de Israel e de Judá e toda a história que segue.

Quanto à interpretação dos últimos capítulos de 2Samuel, precisaríamos tomar cada um deles e julgá-los singularmente. Seriam, portanto 6 interpretações. Todavia existe uma sincronia entre eles. De fato, se observamos bem existem 3 relações:
Textos 1 e 6: desgraça - fome e peste
Textos 2 e 5: fatos heróicos "“ gigantes filisteus e valentes e Davi
Textos 3 e 4: poesia

Esse modo de organizar a apresentação da perícope já nos ajuda a dar uma interpretação. Além disso cada narração e poesia tem como pano de fundo o conflito entre Davi e Saul, os dois primeiros reis de Israel. Sabemos que todos os dois reis foram ungidos por Samuel, por ordem de YAHWEH, mas Saul não aparece bem no texto bíblico. O texto bíblico enaltece a figura de Davi, que todavia não tem vida fácil para conquistar o trono, pois Saul também foi ungido por Deus. O autor sagrado mostra como todas as peripécias de Davi contra Saul são inspiradas por Deus e, no fundo, é Deus quem quer destituir Saul e colocar Davi sobre o trono. Os textos poéticos mostram isso muito bem. Todavia provavelmente eram orações que o povo fazia, não necessariamente Davi, mas que em 2Samuel são colocadas nas bocas de Davi para exprimir o seu eventual sentimento de graditão a Deus por lhe ter ajudado a se tornar rei.

Um capítulo um pouco complicado para entender é o 24, o recenseamento do povo. Parece que sob ordem de YAHWEH Davi ordena uma contagem do povo de Israel e de Judá. Obtido o número das pessoas Davi se dá conta de ter cometido um pecado. De fato, o enviado de Deus, para expiar a culpa, propõe ao rei 3 penas, entre as quais deve escolher uma: a peste de 3 dias. Esse texto tem como background a mentalidade religiosa segundo a qual tudo era referido a Deus, sendo ele a causa primária de tudo. Além disso, na concepção antiga, Deus mantinha o registro daqueles que devem viver e morrer e não cabia aos seres humanos empossessar-se de tais números: era uma prerrogativa divina. Para harmonizar a história, no Livro das Crônicas, quem ordena o recenseamento do povo não é Deus, mas Satã (veja 1Crônicas 21,1-5).