Mês da Bíblia 2015
Discípulos missionários a partir do Evangelho de João.
“Permanecei no meu amor, para dar muitos frutos” (Cf. Jo 15,8-9)
Prof. Odalberto Domingos Casonatto
Introdução.
O mês da Bíblia deste ano propõe como estudo o evangelho de João, buscando forças e reforçando a espiritualidade dos agentes e dos fies através do seguimento de Jesus. Com este objetivo a Comissão Episcopal Pastoral Bíblico-catequética da CNBB, que anima o estudo bíblico, se propôs a empenhar-se nos quatro anos (2012-2015), ao estudo dos evangelhos de Marcos (2012), Lucas (2013) e Mateus (2014), seguindo a caminhada do Ano Litúrgico, finalizando com o estudo do evangelho de João em 2015. Portanto o mês da bíblia deste ano 2015 nos levará ao estudo deste evangelista, o quarto, o evangelho que é escrito no final do primeiro século, pelo ano 95 d.C., onde João e sua comunidade fazem uma releitura existencial da proposta de Jesus e de seu seguimento.
Ainda estamos lembrados da preparação da celebração do jubileu do ano 2000. Queríamos conhecer o rosto de Jesus descrito nos 4 evangelhos, e assim aconteceu. Agora o enfoque, será outro. Tem como objetivo: reforçar a formação e a espiritualidade dos agentes e dos fiéis através do seguimento de Jesus, no estudo dos quatro evangelhos. Junto com este objetivo não esquecemos a Missão Continental que nos pede a Conferência de Aparecida, no esforço de uma Nova.
Assim neste ano de 2015 conclui-se, com o Evangelho de João, um ciclo de quatro anos nos quais o Projeto Mês da Bíblia ajudou a cultivar uma mística de discípulos missionários a partir dos Evangelhos. Esta proposta teve sua origem no Documento de Aparecida que apresentou este apelo para todos os batizados do continente latino-americano, através do tema: “Discípulos missionários de Jesus Cristo para que nEle nossos povos tenham vida.”
Chaves de leitura para entendermos o texto der João
Nos propomos nestas páginas apresentar algumas chaves de leitura, que irão facilitar a proposta do estudo do evangelho de João nos círculos Bíblicos, grupos de animação bíblica, com o método da leitura Orante, tão conhecida em nossos grupos de estudo e animação pastoral. O Evangelho de João sofreu, ao longo da história da interpretação, influências de uma leitura espiritualista que impediu as comunidades de ver o texto, interpretá-lo e atualizá-lo dentro de uma perspectiva transformadora e missionária. Com a finalidade de utilizar “a leitura Orante” nos propomos apresentar algumas chaves de leitura, a partir da realidade histórica da origem da Comunidade Joanina e na perspectiva do hoje. O mês da Bíblia 2015 tem como objetivo alimentar a espiritualidade dos discípulos missionários. São algumas chaves que facilitarão a compreensão do texto e sua interpretação.
Primeira chave de Leitura: O Evangelho de João nasce na vivência do seguimento da Comunidade Joanina.
Destacamos a comunidade como uma chave de leitura importante. Ela foi, por assim dizer, o “laboratório” onde a proposta de Jesus foi anunciada oralmente pelos apóstolos e vivida nas comunidades. É uma grande riqueza a experiência da comunidade que deu origem ao Evangelho de João, suas cartas e do Apocalipse.
Conhecer a história da Comunidade Joanina é chave de leitura para interpretar o Evangelho de João e Cartas. Essa pertence à tradição do discípulo amado e testemunho escrito e vivido ao longo do primeiro século (30 até 120 d.C).
A seguir tentaremos resumidamente construir a história da Comunidade onde nasceu a tradição e a redação.
1ª Etapa - Origem da Comunidade (30 a 50 d.C.)
O discípulo amado aparece como discípulo de João (Batista) e que em seguida segue a Jesus junto com André (1,35-40). A primeira Comunidade forma-se com João, André, Simão, Felipe e Natanael. Pela índole de seus membros se caracteriza como uma comunidade judeu- cristã que aceita Jesus como Messias, profeta e rei de Israel. A profissão de fé de Natanael prova isto: “Rabi, tu és o Filho de Deus, és o Rei de Israel”.
Notamos aqui Jesus convidando os primeiros discípulos ao seguimento, mas João diferentemente dos sinóticos não narra a lista dos 12 primeiros discípulos.
2ª Etapa - A Comunidade Joanina cria identidade.
Pouco a pouco a Comunidade Joanina, em fidelidade radical a memória de Jesus, passa a criar uma identidade própria (50-70 d.C.).
3ª Etapa - Expulsão da Comunidade das sinagogas o Evangelho de João passa a ser escrito
A Palestina durante os anos de 64 a 74 d.C. vive um momento critico. A guerra judaica contra Roma segue implacável, culminando com a destruição de Jerusalém. A partir do ano 70 a Comunidade Joanina se defronta com a perseguição da parte dos “judeus”, que expulsa os Cristão-judeus das sinagogas e sofre perseguição do mundo (Império Romano). Neste período e escrito o Evangelho (70 a 90 d.C.
4ª Etapa - As epístolas como resposta a crise em vista de uma unidade
Neste período a Comunidade do discípulo amado sofre uma crise interna. Existem membros da Comunidade que tentam espiritualizar o Evangelho tendo como ponto de partida a Gnose, Religiões orientais e o helenismo.
Depois das Cartas: Verifica-se a união com a Igreja Apostólica (120 d.C)
Segunda Chave de leitura: A Comunidade Joanina em meio aos conflitos
Conflito com o Império Romano (mundo)
No ano 64 d.C. o Império Romano passa as mãos do Imperador Nero (64-68) e os cristãos sofrem a primeira perseguição pública generalizada. Uma outra perseguição mais violenta aconteceu 30 anos mais tarde com o Imperador Domiciano (95-96). A obrigação de aderir às práticas da Religião Imperial, o culto ao Imperador (adorar a César, ele é o Senhor), fez com que os cristãos fossem perseguidos, pois negavam essas práticas.
Conflito com o Judaísmo.
Com a destruição do Templo (70 d.C) o Judaísmo reorganizou-se em torno ao Sinédrio, tendo como centro o povoado de Jâmnia, na proximidade do Mediterrâneo. Os fariseus começa a dirigir as sinagogas e a expulsar os cristãos das sinagogas. No Evangelho aparece este conflito, os judeus são aqueles que enxergam, mas não vêem os que rejeitam a luz vinda ao mundo, são considerados pela Comunidade Joanina como filhos de Satanás.
Conflito com os discípulos de João Batista
O número de vezes que aparece João Batista no texto do Evangelho de João nos sugere a existência de problemas entre os discípulos de João Batista e a Comunidade Joanina. O Evangelho coloca claramente que João Batista não é o Messias, mas aquele que prepara e indica o caminho do Messias.
A inclusão dos versículos 6-8 e 15 no prólogo mostram que o redator quer caracterizar muito bem João Batista. Nos versículos 6-8 João aparece como testemunho da Luz, para que todos creiam por meio dele. Os versículos 15 e 8 mostram o lado polêmico – “ele não era a luz”.
Conflito com a cultura grega
A Comunidade Joanina organizando-se na Ásia toma contacto direto com outro mundo cultural. A esse mundo cultural se fazia necessário traduzir a mensagem de Cristo, o que não era fácil e tranqüilo.
Conflitos internos na Comunidade
A Comunidade Joanina quando chegou à Ásia já haviam percorrido uma caminhada de mais de 30 anos. A situação externa vivida nas comunidades da Ásia agravava a situação de vivência do verdadeiro cristianismo. Muitos até desanimaram e abandonaram a fé (é difícil demais - Jo 6,60). O que faz a Comunidade Joanina sofrer ainda mais é que muitos não dão testemunho vivencial do Cristo ressuscitado. Começou aparecer brigas internas, busca do poder, ambição, falta de vida fraterna e desprezo entre os membros da comunidade (Jo 9).
A preocupação de João, manifestada nos seus escritos, foi de apresentar aos membros da comunidade uma volta ao essencial do Evangelho de Jesus Cristo: o amor fraterno. No chamado livro da Comunidade que se estende do capitulo 13 a aparecem textos, como o lava-pés, a videira e os ramos e a oração sacerdotal que orientam a comunidade ao amor fraterno.
Terceira chaves de leitura: As mulheres na Comunidade Joanina
A sociedade do tempo de Jesus discriminava as mulheres. Elas eram oprimidas e marginalizadas. Jesus encontrou a situação da família patriarcal e tomou um posicionamento novo e revolucionário. Sua atitude em relação às mulheres tem um caráter eminentemente libertador. Dentre os Evangelhos é o quarto Evangelho aquele que mais se aproxima da memória de Jesus. A prática nova de Jesus em relação às mulheres transparece no texto, onde encontramos varias passagens que a elas tem referência. Não podemos entender a história da Comunidade Joanina ignorando esta característica. A participação da mulher na vida da comunidade passa a ser chave de leitura importante. Tentaremos lembrar passagens significativas onde transparecem a participação feminina no texto do quarto Evangelho.
Maria, mãe e discípula de Jesus
A Mãe de Jesus aparece várias vezes ao longo do Evangelho. Seu nome é citado 15 vezes e está relacionado às outras discípulas de Jesus. Maria como Mãe de Jesus não aparece, Jesus a chama de “mulher”. Este fato indica que Jesus tem sua mãe como discípula, como mulher que acredita nele e evangeliza. O que une Jesus a sua mãe é a fé e não o sangue, este pensamento já aparece nos sinóticos (Mc 3, 31-35; Mt 12, 46-50; Lc 8,19-21).
Na abertura do livro dos sinais (2-11) encontramos o fato das Bodas de Caná (2, 1-12), Maria, a Mãe de Jesus sensibilizada pelo fato do vinho ter terminado e diz a Jesus: “Eles não tem mais vinho”. Maria representa a mãe dos viventes, representa o povo fiel que está a espera do Messias e ordena aos serventes para estarem atentos a Jesus. O vinho abundante rompe o contexto das Bodas de Caná e torna-se o primeiro sinal que João apresenta em seu Evangelho. Jesus através deste milagre manifesta sua glória e os discípulos creram nele. A mulher (Mãe de Jesus) se faz discípula de Jesus.
Encontramos a Mãe de Jesus, pela segunda vez, aos pés da cruz, com o discípulo que ele amava (Jo 19, 25-27). O discípulo amado e a Mãe são duas personagens importantes para entendermos a Comunidade Joanina. A Mãe de Jesus novamente e chamada de “mulher” . Nesta passagem simboliza a Comunidade do discípulo amado. João recebe Maria em sua casa, isto é, na Comunidade. Na Comunidade ela é acolhida como Mãe (RICHARD,1994).
Jesus e a samaritana (Jo 4, 1-42)
Do encontro de Jesus com a samaritana muito já tem se escrito. A mulher samaritana junto com tantas outras mulheres do tempo de Jesus mostra a mulher numa das piores situações. A mulher por si só era desprezada, além do mais era samaritana, e se não fosse suficiente estava em uma situação difícil conforme narra o versículo 18, “por ter tido cinco maridos e por estar vivendo com um que não e seu marido”. “Esta mulher foi à escolhida por Jesus para uma revelação especial e tornou-se missionária na sua aldeia” (WEILER, 1993, p. 100). O texto nos mostra que a Comunidade Joanina é constituída a partir das discípulas de Jesus. Por sua vez a Igreja apostólica de Jerusalém colhe os frutos daquilo que outros já tinham semeado e cresce sobre a fadiga do trabalho de tantos apóstolos e missionários.
Marta e Maria, irmãs de Lázaro (Jo 11-12)
O texto do Evangelho de João nos fala que Marta, Maria e Lázaro constituem em Betânia a Comunidade de Jesus. Betânia servia de entroncamento de estradas que vinham de Jericó para Jerusalém e daí seguiam para Belém. A população na sua maioria era formada de Galileus, sendo assim o lugar preferido de Jesus para se hospedar, quando das suas viagens a Jerusalém para cumprir os rituais da lei que prescreviam a vinda a Jerusalém nas três festas anuais de preceito.
Um fato digno de nota é a confissão de fé de Marta: “Eu creio que tu és o Cristo, o filho de Deus que devia vir a este mundo” (Jo 11,27). Alguns autores colocam esta profissão de Marta como correspondendo a confissão de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16; Mc 8,29). Mas estes autores dizem que o valor teológico desta confissão de Pedro e muito menor que a de Marta.
Maria Madalena a testemunha da ressurreição.
Maria Madalena é testemunha ocular do fato da ressurreição: “vi o Senhor” (Jo 20, 1-18). É a autêntica discípula de Jesus e faz o primeiro anuncio da Ressurreição, como também da Nova Aliança: “Vai e dize aos meus irmãos que subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”.
Quarta Chaves de leitura: Os pobres, os marginalizados e os desprezados como ponto referencial
O Evangelho de João caminha em outra direção com referência aos sinóticos. Para o evangelista João o pobre aparece na figura do doente que Jesus cura, no desprezado, no marginalizado (samaritanos) e nos excluídos.
A palavra pobre no Evangelho de João aparece raramente, apenas em quatro citações. O peso teológico e social e bem menor daquele que aparece nos sinóticos. O texto de Jo 12, 5.6 e 13,29 fala de pobres, mas longe de ter importância teológica para aprofundamento da questão. Um texto mais significativo seria de 12,8: “Pois sempre tereis pobres convosco, mas a mim nem sempre me tereis”. Provavelmente esta frase João a trouxe da tradição sinótica e ao longo da história da exegese ofereceu as mais diferentes interpretações. A preocupação disfarçada de Judas dá a entender uma preocupação paternalista em relação aos pobres. Entretanto, a comunidade que vivencia o Cristo e seu projeto, será eminentemente pobre e, por esta razão, sempre aberta aos outros pobres. A frase indica a forma de relação que existe entre os pobres e a Comunidade Joanina. A Comunidade esta separada do mundo, mas não esta separada dos pobres (MATEOS; BARRETO, 1989).
Os doentes e enfermos aparecem em grande número de citações do Evangelho de João, sempre com o sentido de fraqueza, corporal e falta de participação social.
João escolhe “a dedo” os milagres que Cristo realizou, para a narrativa de seu Evangelho. A cura do filho do funcionário real (4, 43-54) fato inusitado por se tratar do filho de um burocrata ligado à casa de Herodes; a cura do paralítico na piscina de Betesda, onde ali se encontravam numerosos doentes, cegos, coxos, paralíticos a espera de um milagre (5,1-9); a cura do cego de nascença (9,1-12) que o texto tão bem o descreve como sendo um marginalizado pela sociedade, estava mendigando a beira do caminho. E o último e maior de todos os milagres a ressurreição de Lázaro onde, além de ser pobre, vivendo nas periferias de Jerusalém estava doente, prestes a morrer.
Jesus deixa um ensinamento novo nestas curas que operou:
a) Vai ao encontro dos pequenos e marginalizados e dá a eles possibilidade de vida.
b) No fato do milagre, Cristo deixa claro que não está no Império Romano a solução para os pobres e doentes etc, nem estava em uma escatologia futura e nem na espera do Messias, mas o mundo novo tem início com Jesus o verdadeiro “eschaton”.
É notório nos textos do Evangelho de João o fato que Jesus vai ao encontro dos discriminados. O mais significativo nos aparece no encontro de Jesus com a samaritana e o caminho que Ele percorreu através da Samaria. No mundo novo não há lugar para uma religião que exclui pessoas, grupos ou etnias. Todos são chamados a viverem o verdadeiro Evangelho de Jesus.
Concluindo:
Olhando o conjunto da obra de João e o que se propõe o mês da Bíblia deste ano 2015 com o tema e lema: Discípulos e Missionários a partir do Evangelho de João.
“Permanecei no meu amor para dardes muitos furtos” (Jo 15,8-9), somos convidados a assumir o convite de Jesus para sermos seus discípulos na comunidade. Ele nos desafia os conflitos são enormes, mas nada que possa nos tirar da missão evangelizadora. Os desafios são permanentes para os responsáveis pela Igreja e comunidades. João no seu evangelho nos indica que a presença da mulher na obra de evangelização é fundamental. O evangelho de João enaltece a presença de Maria mãe de Jesus, da mulher samaritana de Marta e Maria, Madalena e outras. Finalizando se quisermos ter a presença de Jesus em nosso ministério, o fator mais importante sempre e estar ao lado dos pequenos e fracos estes são os preferidos de Deus. O evangelho de João nos indica. Na leitura orante dos textos do evangelho de João neste mês Bíblico de 2015 estas chaves de leitura deverão estar presentes como alavancas na compreensão do seguimento de Jesus. Assim a frase de Jesus se cumprirá: “Permanecei no meu amor, para dar muitos frutos (Cf. Jo 15,8-9).
Consulta:
Ballarini, T., Introdução a Bíblia IV, Vozes, Petrópolis, 1989.
Brown, R.E., A Comunidade do Discípulo Amado, Paulinas, São Paulo 1982.
Cothenet, E.... et. al., Os Escritos de João e a Epistola aos Hebreus, Biblioteca de
Ciências Bíblicas 6, Paulinas, São Paulo 1988, 56-61.
Jaubert, A., Leitura do Evangelho Segundo João, Paulinas, São Paulo 1982.
Konings, J., Encontro com o quarto Evangelho, Vozes, Petrópolis 1974.
Mateos, J. - Barreto, J., O Evangelho de São João, Paulinas, São Paulo, 1989.
Richard, P., Chaves para uma releitura histórica e libertadora (quarto Evangelho e Cartas), Ribla 17 (1994) 7-26.