Prezado Fiorenzo,

A tua pergunta é teológica e até certo ponto exegética. Tentamos dar uma resposta, mas gostaria de dizer que ainda há muito o que dizer sobre este assunto. As pesquisas continuam.

O Evangelho de João é uma reinterpretação da Escritura com ênfase no Livro do Êxodo. A indicações mais claras das tradições do Êxodo em João são encontradas no prólogo de abertura (João 1,1-18). Naturalmenteo prólogo é uma introdução ao Evangelho, porém uma introdução que já aparece como síntese de tudo aquilo que irá se discutir durante todo o escrito joanino.

Logo no inicio ecoam as palavras da Torá de Moisés, (“No princípio era o Verbo...” Gn 1,1). Estas palavras já definem claramente a sua sintonia com o ritmo de Moisés.

Lembramos aqui que, para os judeus do tempo de Jesus, a Torá era Moisés e Moisés era a Torá (cf. At 15,21: “Pois, desde os tempos antigos, Moisés tem em cada cidade os seus pregadores, que o leem nas sinagogas todos os sábados”. A personalidade e a entidade se tornaram sinônimos. Falar em Moisés é falar em Pentateuco, é falar em Torá.

Logo, fica claro que a identidade de Moisés no primeiro século estava intimamente ligada à Lei (Torá) dada no monte Sinai. Esse recurso começa no prólogo (“Porque a Lei foi dada por meio de Moisés”, 1,17) e se manifesta em todo o Evangelho.

A frase mais citada do prólogo ( “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” 1,14), tem uma referência direta com Êxodo 29,43-46). Ela evoca claramente a linguagem do deserto no texto grego. Com o uso da palavra Gr skheno, em Hb. Shakhan de onde vem a palavra Shekhina (fixar a tenda, habitar ou viver numa tenda). Portanto, “habitou entre nós” evoca para seu público mais experiente, mais sábio a Tenda ou Tabernáculo do deserto. Assim, a memória da presença de YHWH localizada na parte interna do Tabernáculo iria evocar o mesmo sentimento na vida e na encarnação de Seu Filho, o Logos, a Palavra. O apocalipse confirma esta ideia quando diz: Eis o tabernáculo de Deus com os homens” (Rev 21,3).

 

Entrando mais no mistério Pascal.

No quarto Evangelho, João Batista apresenta Jesus como “Cordeiro de Deus” (1,36). Mas afinal de contas, de que cordeiro se trata? Não há nenhuma sombra de dúvida que se refere ao cordeiro da Pascoa (Ex 12).

Claro, o Êxodo e a Páscoa foram considerados ao longo dos séculos antes de Cristo o padrão e o protótipo da Redenção Messiânica. De fato, é pressuposto do Novo Testamento como um todo, e por excelência nos Evangelhos, que a morte de Jesus é o ato redentor que inaugura o novo Êxodo escatológico da salvação.

E é talvez aqui, em João, onde essa expectativa chega à sua mais gloriosa consumação.

Lembretes da Páscoa permeiam o contexto (13,1; 18, 28.39; 19,14). A festa da Páscoa fornece aos leitores uma estrutura teológica com a qual interpretar a paixão de Jesus.

Na celebração da festa, o cordeiro pascal escolhido devia ser perfeito ou sem mácula. Para verificar este fato, as famílias tinham que manter o cordeiro com eles durante quatro dias, em seguida, matá-lo no crepúsculo (Ex 12,5-10). É dentro deste contexto que a declaração de Pilatos, em 19,6 é muito significativa: "Tomai-o vós e crucificai-o, porque eu não acho culpa Nele." Em outras palavras, como o cordeiro, sem defeito, ele é apto para ser sacrificado.

Lembramos que, de acordo com o Evangelista, Jesus foi crucificado no dia da preparação da Páscoa (19,31.42), que era o décimo quarto dia de Nisan de acordo com a cronologia de João (Ex 12,6). Isto aconteceu ao mesmo tempo que os israelitas fiéis estariam abatendo seus cordeiros para a celebração da Páscoa. O facto de os guardas não quebrarem as pernas de Jesus (19,33) estava diretamente relacionado com o prescrito tratamento do cordeiro pascal e é explicitamente confirmada em 19,36 (Ex 12,46 "É para ser comido em uma única casa; vocês não devem levar nenhuma parte da carne fora da casa, nem é para quebrar qualquer osso dele." Cf. Nm 9,12).

Apresentamos aqui, apenas alguns elementos de ligação entre o Êxodo e o Evangelho de Joao. Todavia, em cada capitulo do seu Evangelho nós podemos encontrar elementos do Êxodo como pano de fundo para todo o relato.